Antes de Constantino, os cristãos primitivos eram extremamente perseguidos por serem considerados muito exclusivos, restritos e estranhos pela cultura em sua volta; e ainda assim cresceram de maneira rápida, especialmente nos centros urbanos.
Isso foi resultado de um ‘encontro missionário’ efetivo da Igreja com a sociedade romana. Havia, na mesma medida, ofensa e atração, confrontação e persuasão. O cristianismo não se adaptou à cultura para ganhar mais aderentes, mas também não permaneceu um grupo pequeno e isolado. O cristianismo confrontou e criticou a cultura, e os crentes sofreram por isso — e ainda assim a fé convenceu a muitos, atraindo um número crescente de convertidos todos os dias.
O que podemos aprender?
Está claro que nas sociedades ocidentais os cristãos são vistos novamente como exclusivos e restritivos demais. E que eles podem ser num futuro próximo excluídos de muitos trabalhos governamentais, acadêmicos e corporativos, ou marginalizados de alguma outra maneira.
O que podemos aprender da igreja primitiva para que tenhamos nosso ‘encontro missionário’ efetivo com a cultura?
Em primeiro lugar, devemos parar de pensar que nosso testemunho vai signicar necessariamente ou em um crescimento explosivo (se aplicarmos bem alguma fórmula ministerial) ou, ao contrário, numa redução lenta de nossa presença com pouco fruto ou impacto. 1 Pe 2.11–12 nos dá um breve resumo da dinâmica missionária quando nos diz, em uma frase, que alguns de fora da igreja os acusou e perseguiu, enquanto outros viram suas boas obras e glorificaram a Deus.
Segundo, devemos evitar tanto a assimilação total como a rigidez na aceitação de ideias. Há aqueles que, com o objetivo de atrair milhares, escondem os aspectos mais ofensivos e exigentes do cristianismo. E também há aqueles que insistem que qualquer esforço para adaptar nossas apresentações evangelísticas a aspirações culturais particulares é errado.
Gregório de Nissa, no prólogo de seu Catecismo Maior, insiste que não se pode ganhar um politeísta e a um judeu pelos mesmos argumentos. Ele dizia que devemos emoldurar sua exposição do evangelho de forma diferente em cada caso. E nós também devemos fazê-lo.
Aqui estão quatro coisas que nosso encontro missionário deve conter, se quiser ser efetivo hoje:
1. Uma apologética pública, de alto nível e popular
A igreja primitiva desenvolveu uma apologética pública efetiva (e.g., Justino Mártir, Tertuliano, Orígenes, o autor da Epístola a Diogneto, e Agostinho). Seguindo o seu exemplo, não devemos apresentar uma apologética puramente racional, mas também cultural. Agostinho desenvolveu uma “Alta teoria” crítica da cultura pagã. E defendeu as crenças que soam exclusivistas dos cristãos da seguinte forma: “Nossas crenças e vidas não são de maneira alguma fragilizadas pelo tecido social — elas o fortalecem. Na verdade, vocês nunca terão a sociedade que desejam ter se vocês se manterem em seu politeísmo.”
Mas, além dessa alta teoria, devemos possuir também uma apologética popular. Precisamos mostrar como as principais promessas da cultura secular em relação a significado, satisfação, liberdade e identidade, na verdade, não podem ser cumpridas. Precisamos de uma explosão de apologética de ‘testemunhos’ — uma coletânea bem pensada, acessível e diversa de histórias de pessoas que tiveram a suas vidas mudadas pelo evangelho ao se encontrar com Cristo. Também precisamos de livros acessíveis que exponham a profundidade lógica por trás da sexualidade cristã. E finalmente, uma apologética numa sociedade pós-cristã deverá incluir também uma mostra de arrependimento público pelas falhas de igreja do passado e do presente.
2. Uma contracultura
Como a igreja primitiva, devemos ser uma alternativa social com diversas características:
- Devemos ser marcados por uma multietnicidade surpreendente. O cristianismo é, de longe, a religião mais diversa etnicamente do mundo. Esse é um enorme fator de credibilidade em favor do Cristianismo. Ainda assim, a igreja ocidental, muitas vezes não trabalha de forma multiétnica. As figuras públicas da igreja devem participar de tantos grupos raciais quanto for possível.
- Devemos ser pioneiros em civilidade, em construir pontes com os que se opõem a nós. Os cristãos primitivos eram extremamente perseguidos e mortos, mas a igreja praticava o perdão e não retaliava. Em nenhum lugar do Ocidente os cristãos sofrem algo parecido, mas muitos respondem a criticismo verbal com o tom de desprezo e com ataques. Os cristãos devem ser pacificadores (Mt 5:9), não desprezar nossos críticos, e se afastar da tentação de ‘sentar na roda dos escarnecedores’ (Sl 1:1).
- Devemos ser famosos por nossa generosidade, pelo cuidado com o pobre e pelo comprometimento com a justiça na sociedade. A igreja deve ser conhecida como a principal instituição trabalhando na organização de comunidades pobres e marginalizadas, e por advogar os seus interesses perante o governo e os negócios.
- Devemos ser comprometidos com a santidade da vida e em ser uma contracultura sexual. A igreja de hoje não deve simplesmente manter a ética sexual em meio a seu povo, mas deve aprender a criticar as narrativas culturais falsas que dão base as práticas e visões sexuais de nossa sociedade.
3. Presença fiel nas vocações
A igreja de hoje deve equipar cristãos com uma doutrina da vocação que saiba integrar a fé e o trabalho. Essa ‘presença fiel’ dentro dos campos vocacionais nos ajudará a liderar, entre outras coisas, a uma reforma do capitalismo (restaurando confiança aos mercados financeiros através da auto-regulação), a uma reforma da política (não buscando um simples centrismo, mas restaurando o bipartidarismo), e a uma reforma da academia, da mídia, das artes e da tecnologia.
4. Uma abordagem evangelística
Não há nenhuma apresentação evangelística que se encaixe em toda cultura, mas toda cultura precisa que o pecado e a salvação sejam comunicados de forma compreensível. O evangelho se relaciona com outras religiões e com outras visões de mundo como um “cumprimento subversivo” de seus anseios— isso quer dizer que o evangelho cumpre as aspirações mais profundas de cada cultura, mas o faz contradizendo as formas distorcidas e idólatras que o mundo adota para satisfazê-los.
A igreja de hoje deve descobrir as várias maneiras de apresentar o evangelho para nossa cultura e para os grupos que a compõem, não apenas por meio da pregação, mas através da vida pública de cada cristão.
5. Formação cristã na era digital
A igreja primitiva formava pessoas em cristãos vibrantes em meio a uma cultura pagã. Seus membros tinham prioridades amplamente diferentes em relação ao dinheiro e ao sexo, e a muitos outros assuntos. Alan Kreider aponta para o fato de que os cristãos primitivos conseguiram atingir essa distinção da sociedade em que viviam através de três anos de treinamento como discípulos, através do fortalecimento de sua comunidade e de seus relacionamentos através de uma rica adoração.
A igreja de nosso tempo enfrenta o mesmo desafio. Em meio de uma cultura secular com diferentes narrativas (e. g., “você deve ser verdadeiro consigo”, “você deve fazer aquilo que te faz feliz”, “ninguém tem o direito de te dizer como viver”), como nós formamos cristãos mais moldados pela narrativa bíblica? Hoje enfrentamos algo totalmente diferente da Igreja primitiva: a tecnologia de comunicação. Na era digital, uma pessoa pode absorver diariamente milhares de palavras e centenas de ideias que podem diminuir o poder da interação face-a-face. Nesta situação, como podemos formar pessoas que sejam visivelmente cristãs?
Isso implicará, pelo menos: (a) na formação de boas ferramentas de ensino apresentando a todos as doutrinas básicas da verdade cristã, colocadas em direto contrate com as narrativas da modernidade tardia (por exemplo: “Vocês ouviram isso…mas eu vos digo que, na verdade…”). (b) uma adoração que possa combinar tanto as praticas tradicionais de liturgia como as particularidades culturais. (c) em um bom uso das artes para contar a História crista em histórias, e (d) treinamento teológico a líderes e congregantes para saber conduzir essas práticas formativas.
Por Timothy Keller para o The Gospel Coalition. Traduzido por Rilson Joás. Timothy Keller é pastor fundador da Reedemer Church. Autor de vários best-sellers e fundador do The Gospel Coalition. Você pode encontrá-lo no Instagram.