C. S. Lewis e T. S. Eliot: do forte antagonismo à inesperada amizade

No panteão da literatura inglesa do século XX, C. S. Lewis e T. S. Eliot se erguem como colossos, cada um deixando marcas indeléveis no panorama intelectual e espiritual de sua época. O que poucos conhecem, entretanto, é a fascinante trajetória de sua relação: inimigos literários que se transformaram em amigos improváveis.

Lewis, o eloquente apologista cristão e criador de mundos fantásticos, e Eliot, o sofisticado poeta modernista convertido ao anglicanismo, pareciam destinados a permanecer em universos paralelos, separados por divergências e abismos estéticos e filosóficos. Contudo, o destino tramou um encontro transformador na forma de um convite para revisarem juntos o Saltério do Livro de Oração Comum – uma colaboração que converteria a rivalidade em respeito mútuo.

Gigantes em territórios opostos

Thomas Stearns Eliot personificava o Modernismo em sua essência. Nascido americano mas profundamente absorvido pela cultura britânica, seu revolucionário poema “The Waste Land” (A Terra Desolada, 1922) capturou o espírito de uma geração despedaçada pela Primeira Guerra Mundial. Com versos como “The Love Song of J. Alfred Prufrock” (A canção de amor de J. Alfred Prufrock), Eliot dissecava a alienação e o vazio existencial moderno através de uma linguagem inovadora e frequentemente hermética.

E do outro lado do espectro intelectual estava Clive Staples Lewis, o medievalista de Oxford, fervoroso defensor da tradição literária clássica. Desde sua primeira publicação após sua conversão, “O regresso do peregrino“, Lewis já tentava responder a Eliot, e explicou como se sentia sobre o poeta para seu editor. Para Lewis, Eliot representava “o único homem que resume a coisa contra a qual estou lutando.” Como crítico influente e editor da prestigiosa revista The Criterion, Eliot não era apenas um poeta – era um árbitro do gosto literário de sua época.

Além disso, as primeiras aventuras poéticas de Lewis – “Spirits in Bondage” (1919) e “Dymer” (1926), publicados sob o pseudônimo Clive Hamilton – não alcançaram o sucesso ou reconhecimento crítico das obras de Eliot. Lewis detestava a poesia de Eliot, mas suas próprias tentativas falharam em obter muito elogio ou sucesso no mercado, o que levou muitos a especular sobre a verdadeira motivação de Lewis ao criticar o bem sucedido Eliot.

J.R.R. Tolkien, amigo íntimo de Lewis, defendeu-o da acusação de que sua antipatia por Eliot seria motivada por inveja. Em uma carta, Tolkien chamou essa sugestão de “uma calúnia grotesca”, acrescentando: “Afinal, é possível não gostar de Eliot com alguma intensidade mesmo que não se tenha aspirações a lauréis poéticos.”

Entretanto, havia razões filosóficas e religiosas para a crítica de Lewis, que chegou a ser professor de Literatura na renomada Universidade de Cambridge, acreditava que a “retidão elementar da resposta humana” era sagrada – um valor que via ameaçado pelas experimentações modernistas. Além disso, sua conversão ao cristianismo na década de 1930 catapultou-o como um dos mais eloquentes defensores da fé, usando alegoria e lógica em obras como “As Crônicas de Nárnia” e “Cristianismo Puro e Simples“.

A proposta modernista para a poesia, para Lewis, era problemática e também elitista, como veremos adiante.

As críticas e desencontros

A aversão de Lewis ao modernismo eliotiano era visceral. Para ele, a complexidade e fragmentação não eram reflexos artísticos da realidade, mas sintomas de uma “decadência da lógica” e uma espécie de “Primitivismo Romântico”, que desconfiava da vitalidade da razão e tentava se apegar a uma versão fragmentada da realidade que não conseguia construir nos leitores o que eles precisavam num mundo que era muito mais que meros fragmentos. A célebre abertura de “Prufrock” – “Pois vamos lá, você e eu, / quando a tarde no céu se estendeu / como um doente eterizado numa mesa” (tradução de Caetano Galindo) – era particularmente ofensiva para Lewis. Em “Prefácio ao Paraíso Perdido” (1942), ele atacou impiedosamente essa imagem:

“Ouvi dizer que a comparação de Eliot da noite com um paciente sobre uma mesa de operação foi elogiada, até mesmo vangloriada, não como um quadro impressionante da sensibilidade em decadência, mas porque era tão ‘agradavelmente desagradável.’ (…) Quando os venenos se tornam moda, eles não deixam de matar.”

Lewis chegou a criar uma paródia cortante desse verso em seu poema “A Confession”: “Por vinte anos, olhei com toda a atenção / Para ver se a noite — qualquer noite — sugeriria / Um paciente anestesiado sobre uma mesa; / Em vão. Simplesmente não consegui.” Em suas cartas, era ainda mais contundente, escrevendo a Paul Elmer More em 1935 que a obra de Eliot não fortalecia contra o caos, mas “infectava com o caos”. Em seu romance alegórico já citado, “O regresso do peregrino” (1933), caricaturou Eliot como “Sr. Neoangular”, um personagem que “fala como se visse coisas invisíveis”.

Um encontro pessoal em 1945, orquestrado pelo amigo mútuo Charles Williams no Mitre Hotel em Oxford, apenas intensificou a tensão. É relatado que Eliot abriu a conversa com uma provocação mal disfarçada: “Sr. Lewis, você é um homem muito mais velho do que parece nas fotografias!” O encontro “deteriorou-se a partir daí”. Eliot então elogiou “Prefácio ao Paraíso Perdido” como a melhor obra de Lewis – um comentário desconcertante, pois, na mesma obra Lewis havia desferido alguns golpes deliberados em Eliot.

Não tão distantes quanto parece?

Apesar da hostilidade aparente, pesquisadores também identificam surpreendentes pontos de convergência entre os dois mesmo nesta época. Apesar das críticas ferozes, Lewis e Eliot compartilhavam um profundo interesse pelo mito e uma “religiosidade literária”. Há um paralelo fascinante entre a “pilha de imagens quebradas” de Eliot em “A terra devastada” e a descrição de Lewis em “Perelandra” da mitologia como “vislumbres de força e beleza celestiais caindo sobre uma selva de sujeira e imbecilidade”. Para ambos, os mitos eram fragmentos de uma realidade transcendente, e os dois também bebiam das mesmas fontes clássicas: Dante Alighieri e Spenser.

Há ainda uma outra possível conexão: o conceito alemão de Sehnsucht – um anseio profundo e inefável – como força criativa em ambos. Lewis o descreveu poeticamente como “o anseio inconsolável no coração por não sabemos o quê”. Eliot, especialmente em “Quatro quartetos”, medita sobre memórias carregadas de significado, buscando “o ponto imóvel do mundo que gira”. Essa nostalgia por um bem perdido ou uma beleza apenas vislumbrada era, para ambos, um poderoso combustível criativo, mesmo que canalizado por expressões radicalmente diferentes.

Talvez, por esta razão ambos se converteram na vida adulta, pois encontraram em Cristo a consumação de anseios fragmentados.

A revisão do Livro de Oração Comum

Entretanto, a reviravolta nesta história de antagonismo começou bem tarde na vida dos dois, através do Livro de Oração Comum, joia da liturgia anglicana.

Em 1958, o lançamento de “Reflexões sobre Salmos” por Lewis chamou a atenção de Geoffrey Fisher, Arcebispo de Canterbury. Lewis foi convidado a integrar uma comissão encarregada de revisar o Saltério do Livro de Oração Comum. O objetivo era “produzir para a consideração das Convocações uma revisão do texto do Saltério destinada a remover obscuridades e erros graves de tradução, mas de forma a reter, tanto quanto possível, o caráter geral em estilo e ritmo da versão de Coverdale e sua adequação ao uso congregacional.”

Para espanto de muitos – e possivelmente para o próprio Lewis – T.S. Eliot também foi nomeado para a comissão. Assim ocorriam as reuniões da comissão no Palácio de Lambeth: C.S. Lewis ia vestido com tweeds rurais, parecendo um velho camponês de rosto vermelho com uma bengala. T. S. Eliot, enquanto isso, chegava de um mundo muito diferente, um cavalheiro seleto de terno escuro como que saído da Cidade de Londres, com um guarda-chuva enrolado.

O que se seguiu foi uma deliciosa inversão de expectativas onde os dois pareciam trocar de papéis. Lewis, o suposto tradicionalista, mostrou-se o mais aberto à ideia de mudança, considerando absurdo o impulso de reter traduções obscuras porque seriam ‘mais bonitas’. Enquanto Eliot, o suposto modernista revolucionário, emergiu surpreendentemente como o conservador, frequentemente vetando as alterações propostas pelo conselho. “Gostaria de manter os arcaísmos”, insistia ele. Sua esposa, Valerie, relatou como recordava dele retornando tarde de uma reunião e comentando com um sorriso exausto: “Bem, acho que salvei o Salmo Vinte e Três.” E um colega da comissão observou ironicamente que “a contribuição positiva do Sr. Eliot para o Saltério Revisado foi nula. Já que ele passou todo o seu tempo resistindo a qualquer mudança!”

Do antagonismo à amizade

Apesar das discordâncias metodológicas, o trabalho conjunto e a interação regular começaram a dissolver antigas barreiras. Um projeto compartilhado expôs semelhanças que humanizaram Eliot aos olhos de Lewis, engendraram respeito e repararam um relacionamento. Os almoços entre os Lewis, Eliot e suas esposas, Joy e Valerie, após as reuniões tornaram-se ocasiões cada vez mais frequentes e cordiais.

O respeito mútuo floresceu em terreno antes infértil. Pouco antes de sua morte, Lewis confidenciou a seu secretário, Walter Hooper: “Você sabe que eu nunca gostei da poesia de Eliot, nem mesmo de sua prosa. Mas quando nos encontramos desta vez, eu o amei de primeira!” Sobre seu trabalho na comissão, Lewis escreveu com entusiasmo: “éramos uma família maravilhosamente feliz. Raramente desfrutei tanto de algo.”

Um tocante epílogo desta história ocorreu quando Eliot, em seu papel de editor na Faber & Faber, foi um dos primeiros a identificar C. S. Lewis como o autor por trás do pseudônimo N. W. Clerk que ele usou em “A Anatomia de um luto” – o dilacerante relato de Lewis sobre o luto que passou pela morte de sua esposa, Joy Davidman. Eliot elogiou o livro e deu alguns conselhos que protegeram o anonimato de Lewis – um gesto de respeito e consideração num momento de dor pelo agora amigo.

Conclusão

A extraordinária evolução da relação entre C. S. Lewis e T. S. Eliot testemunha como o propósito compartilhado e o contato humano genuíno podem transcender até as mais profundas divisões intelectuais e estéticas. O modernista que Lewis outrora considerava um arauto da decadência cultural transformou-se em um colega respeitado e, finalmente, em um amigo estimado.

O projeto de refinar as palavras sagradas da oração anglicana acabou por refinar e humanizar o vínculo entre dois dos mais formidáveis intelectuais do século XX. Embora suas visões sobre a forma e o propósito da poesia permanecessem distintas, a experiência colaborativa no comitê do Saltério permitiu que descobrissem um terreno comum na fé compartilhada e no respeito pela tradição litúrgica.

No final, foi por meio da Palavra de Deus que se aproximaram estes dois gigantes literários, provando que mesmo os mundos aparentemente mais irreconciliáveis podem encontrar, afinal, um ponto de comunhão.

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