Em um século XX convulsionado por guerras e ideologias totalitárias, dois nomes britânicos se ergueram como faróis do pensamento: C.S. Lewis e George Orwell. Suas obras, carregadas de paixão e perspicácia, continuam a nos provocar e desafiar intelectual e moralmente. Embora partissem de mundos filosóficos distintos – o fervor cristão de Lewis contra o ceticismo agnóstico e socialista de Orwell – ambos lutaram contra os mesmos demônios da desumanização e da tirania.
O mais fascinante é que esse embate não foi apenas do plano da especulação. Existe evidência documentada de que Orwell leu e comentou publicamente a obra de Lewis, e vice versa, deixando registros de como um via o trabalho do outro.
O olhar de Lewis sobre Orwell
C. S. Lewis, apologeta da fé cristã, cujas palavras ecoavam desde os corredores acadêmicos de crítica literária até os mundos mágicos de Nárnia, expressou opiniões sobre a obra de Orwell que podemos encontrar em seus escritos.
Em seus comentários sobre “1984“, Lewis manifestou preferência por “A Revolução dos Bichos“. Como registrado, Lewis descreveu o apêndice sobre a “novilíngua” em “1984” como “magnífico e afortunadamente separável da novela”, considerando o romance em si como meramente um “livro interessante e defeituoso”, em contraste com “A Revolução dos Bichos”, que via como “genial”.
Lewis admirava a clareza cortante e a prosa direta de Orwell, qualidades que ele próprio prezava e buscava em seus escritos. Contudo, por trás da admiração pela forma, havia uma profunda discordância com parte do conteúdo. Lewis via nas distopias de Orwell um abismo desesperador, uma visão de mundo onde a tirania parecia não apenas possível, mas inevitável, esmagando qualquer vislumbre de esperança.
Ancorado em sua fé, Lewis rechaçava essa visão. Para ele, a existência de uma verdade moral objetiva, de raízes divinas, oferecia uma promessa de redenção que o agnosticismo de Orwell parecia negar. Onde Orwell via a fragilidade da verdade em um mundo sem Deus, Lewis enxergava a solidez de uma ordem moral universal.
A crítica de Orwell sobre Lewis
Do outro lado do espectro, George Orwell olhava para a obra de C.S. Lewis com uma mistura de respeito literário e profunda desconfiança filosófica. Em 1945, Orwell leu e efetivamente resenhou “Aquela fortaleza medonha“, o terceiro volume da Trilogia Cósmica de Lewis. Em sua análise publicada no Manchester Evening News em 16 de agosto de 1945, Orwell começou com sua famosa reserva:
“Em geral, os romances são melhores quando não há milagres neles.”
Contudo, ele reconheceu a “assustadora plausibilidade” da conspiração central do livro – liderada pela N.I.C.E. (Instituto Nacional de Experimentos Coordenados). Orwell admitiu que:
“Não há nada exageradamente improvável em tal conspiração. De fato, num momento em que uma única bomba atômica – de um tipo já considerado “obsoleto” – acabou de explodir provavelmente trezentas mil pessoas em fragmentos, isso soa extremamente atual.”
Sua crítica principal, no entanto, foi implacável: os elementos sobrenaturais, para ele, enfraqueciam a narrativa:
“Infelizmente, o sobrenatural continua invadindo [a narrativa], e o faz de maneiras bastante confusas e indisciplinadas… Eles [os elementos sobrenaturais] enfraquecem sua história, não apenas porque ofendem o senso de probabilidade do leitor médio, mas porque, na prática, decidem a questão de antemão. Quando se diz que Deus e o Diabo estão em conflito, sempre se sabe qual lado vai ganhar.”
Orwell também escreveu uma resenha sobre “Além da personalidade” (que se tornaria parte de “Cristianismo puro e simples“), onde manifestou preocupação com o “exagerado apreço” do qual Lewis estava sendo objeto. A preocupação de Orwell era dupla: inquietava-lhe o êxito da apologética cristã popular na Inglaterra e considerava que a afiliação política destes apologetas era “invariavelmente reacionária”. Referindo-se especificamente a Lewis, Orwell escreveu que “não é tão apolítico como parece”.
Lewis era ciente de que muitos podiam ver ele como uma espécie de ‘campeão do conservadorismo’. E por este mesmo motivo rejeitou uma homenagem oficial por parte de Winston Churchill, para que isso não afetasse a eficácia de sua mensagem.
Ecos e influências
A comparação direta entre “Aquela fortaleza medonha” (1945) e “1984” (1949) revela paralelos perturbadores e possíveis influências. Ambas as obras retratam coletivos totalitários, tecnocráticos e desumanizantes que buscam poder pelo poder e desvalorizam a beleza e a natureza.
As semelhanças se aprofundam em detalhes específicos:
- A figura onipresente do “Grande Irmão” (de onde vem o termo ‘Big Brother’) de Orwell encontra um paralelo na liderança da N.I.C.E. em Lewis.
- A brilhante “Novilíngua” de Orwell, projetada para eliminar o pensamento dissidente, tem paralelo com a forma como os líderes da N.I.C.E. também mudavam o significado de alguns termos para servir a seus interesses de poder.
Considerando que “Aquela fortaleza medonha” foi publicado antes de “1984”, e que Orwell o leu e resenhou, a questão da influência torna-se plausível, embora não possa ser comprovada definitivamente. Ambos os autores também haviam lido precursores como H. G. Wells e Aldous Huxley.
O campo de batalha em comum
Apesar do abismo ideológico, Lewis e Orwell estavam profundamente atormentados pelas mesmas sombras que pairavam sobre seu tempo: o totalitarismo, a opressão, a manipulação da linguagem e a erosão da verdade. Surpreendentemente, suas obras mais proféticas convergem nesse ponto.
“1984” de Orwell expõe a asfixia do pensamento sob um regime que controla a própria realidade através da linguagem. “A Abolição do Homem” de Lewis, por sua vez, ataca a tendência moderna de esvaziar a moralidade objetiva, alertando para uma sociedade desumanizada, controlada por “Condicionadores” que moldam as futuras gerações sem qualquer base de valores.
Lewis e Orwell coincidiam particularmente em sua preocupação com a degradação da linguagem. Ambos viam o empobrecimento do vocabulário e o avanço do eufemismo como sintomas de uma deterioração moral mais profunda. Lewis até cunhou o termo “verbicídio” para descrever este processo: “Quando, por muito reverentemente que o faças, assassinas uma palavra, também tens eliminado da mente humana a coisa que a palavra originalmente significava. Os homens não continuam por muito tempo pensando naquilo que esqueceram como nomear”.
O Legado
Apesar da presciência de Lewis e das conexões intrigantes entre suas obras, foi “1984” que se consolidou como o arquétipo da distopia moderna, transcendendo nichos literários, enquanto “Aquela fortaleza medonha” permaneceu mais conhecido entre os devotos de Lewis.
Diversos fatores contribuem para isso:
- “1984” apresenta uma crítica cultural talvez mais direta e menos atrelada a um contexto religioso.
- Seus conceitos e termos – “Grande Irmão”, “Novilíngua”, “duplipensar”, “crime de pensamento” – infiltraram-se no léxico da cultura pop.
- O final esmagadoramente pessimista de “1984”, onde a liberdade humana é definitivamente aniquilada, talvez ressoe com mais força em uma era frequentemente marcada pelo ceticismo do que a intervenção sobrenatural oferecida por Lewis.
Conclusão
C.S. Lewis e George Orwell: o apologista da fé inabalável e o cético vigilante, o teólogo e o socialista. Suas visões de mundo eram, em muitos aspectos, irreconciliáveis. No entanto, suas obras, nascidas das mesmas convulsões históricas e preocupações humanas semelhantes, formam uma tapeçaria rica e complexa de pensamento que continua a inspirar, provocar e iluminar nosso próprio tempo.
As consonâncias e dissonâncias entre suas obras revelam um diálogo intelectual profundo que transcende o encontro físico ou a troca direta de correspondência.
O respeito que, apesar de tudo, Orwell demonstrou pelo ofício de Lewis, e a atenção que Lewis parece ter dedicado à obra orwelliana, nos lembra que a grandeza literária reside na capacidade de incendiar a reflexão, mesmo – ou talvez especialmente – na discordância.