C.S. Lewis é mundialmente celebrado por transportar milhões de leitores para o mundo mágico de Nárnia através de suas sete crônicas épicas. Contudo, existe um tesouro literário menos conhecido que revela uma faceta ainda mais profunda de sua criatividade: duas marchas de batalha completas que expandem o universo narniano através da poesia.
Poesia em Nárnia
Antes de explorarmos essas composições especiais, vale lembrar que a poesia sempre foi parte integral das Crônicas de Nárnia. Quem poderia esquecer da profecia que ecoa através de “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”: “Quando a carne de Adão e o osso de Adão…”? Ou dos versos místicos em “A Viagem do Peregrino da Alvorada”: “Onde o céu e a água se encontram…”?
Esses versos não são meros ornamentos literários. Eles servem como elementos fundamentais da construção do mundo narniano, seja através de:
- Profecias antigas que moldam o destino dos protagonistas
- Canções de ninar que carregam conhecimento ancestral, como a que Ripicheep ouviu de uma dríade
- Inscrições místicas gravadas em portões dourados e monumentos perdidos
- Epitáfios de reis gigantes em cidades arruinadas
A fantasia e a poesia se complementam perfeitamente, ambas servindo para expressar o inexprimível e descrever o indescritível. Lewis compreendia essa sinergia de forma magistral.
A suíte narniana
Além dos versos esparsos que pontuam as crônicas, Lewis criou duas composições poéticas completas e independentes, conhecidas coletivamente como “Suíte Narniana”. Ambas foram publicadas na coletânea “Poems“, que reúne diversos trabalhos poéticos menores de Lewis.
A marcha dos anões
A primeira composição é uma marcha vibrante estruturada em quatro estrofes intitulada “Marcha para cordas, tímpanos e sessenta e três Anões”,, cada uma seguida por direções cênicas entre parênteses que sugerem uma performance musical real. O poema revela a sofisticada compreensão musical de Lewis e sua habilidade de criar vozes poéticas distintas.
Vejamos um trecho do poema original e sua tradução livre:
“With plucking pizzicato and the prattle of the kettledrum
We’re trotting into battle mid a clatter of accoutrement;
Our beards are big as periwigs and trickle with opopanax,
And trinketry and treasure twinkle out on every part of us—
(Scrape! Tap! The fiddle and the kettledrum).”
Em português:
“Com o dedilhar pizzicato e o tagarelar do tímpano
Marchamos para a batalha em meio ao tilintar de equipamentos;
Nossas barbas, grandes como perucas, gotejam com opopânax,
E bugigangas e tesouros cintilam por todo nosso ser—
(Raspa! Bate! O violino e o tímpano).”
A riqueza sonora é notável desde os primeiros versos. O uso magistral de aliterações e a escolha de palavras que imitam sons criam uma verdadeira paisagem sonora que evoca tanto a música refinada quanto a marcha determinada dos anões. A referência às barbas “grandes como perucas” e ao opopânax (uma resina aromática) adiciona elementos sensoriais que enriquecem profundamente a caracterização desses guerreiros.
O poema prossegue advertindo contra subestimar o exército dos anões. Após descrever várias táticas de batalha, eles cantam sobre seu retorno vitorioso às cavernas subterrâneas que chamam de lar.
A marcha dos gigantes
O segundo poema, “Marcha para tambor, trompete e vinte e um gigantes”, foi publicado primeiramente em 1953 na revista Punch, coincidindo com o lançamento de “A Cadeira de Prata”. O poema apresenta um ritmo mais contundente e ameaçador, como podemos ver no trecho:
“Ho! tremble town and tumble down
And crumble shield and sabre!
Your kings will mumble and look pale,
Your horses stumble or turn tail,
Your skimble-scamble counsels fail,
So rumble drum belaboured—
(diminuendo)
Oh rumble, rumble, rumble, rumble, rumble drum belaboured!”
Em português:
“Ó! Trema cidade e desmorone
E despedace escudo e sabre!
Seus reis murmurarão e empalidecerão,
Seus cavalos tropeçarão ou fugirão,
Seus conselhos confusos falharão,
Então retumbe, tambor castigado—
(diminuendo)
Oh retumbe, retumbe, retumbe, retumbe, retumbe tambor castigado!”
A composição apresenta três estrofes com um ritmo mais contundente e ameaçador que sua contraparte dos anões. As estrofes são “mais altas” (mais longas) mas compostas por versos mais curtos, criando um efeito visual que espelha a própria natureza imponente dos gigantes.
A estrutura sonora é notavelmente diferente da Marcha dos Anões. O uso repetido de palavras com terminações similares cria um efeito que ecoa o próprio caminhar pesado e ritmado dos gigantes. A indicação musical “diminuendo” sugere um gradual diminuir do volume, criando um efeito dramático ao final da estrofe que demonstra o conhecimento técnico musical de Lewis.
A música em Nárnia
Os poemas revelam não apenas talento poético, mas uma compreensão profunda de música e performance. Cada composição incorpora elementos musicais específicos que refletem perfeitamente o caráter de suas respectivas raças:
Os anões recebem um acompanhamento refinado de cordas e tímpanos, com referências técnicas ao pizzicato – a delicada técnica de dedilhar as cordas. Isso reflete sua natureza de artesãos habilidosos e guerreiros estratégicos.
Os gigantes são acompanhados por instrumentos mais grandiosos e intimidadores – tambores e trompetes – que espelham sua natureza imponente e sua força bruta.

A integração desses poemas no universo narniano vai além de sua publicação independente. Uma versão da marcha dos gigantes foi incorporada ao capítulo 8 de “A Última Batalha”, o volume final das Crônicas de Nárnia. Embora com pequenas variações, essa inclusão demonstra como Lewis concebia esses poemas não apenas como obras independentes, mas como parte integrante do tecido cultural de seu mundo fantástico.
Leitores atentos podem reconhecer ecos dessas marchas em outras passagens das crônicas, sugerindo que Lewis tinha uma visão abrangente da cultura musical narniana que se estendia muito além do que foi explicitamente publicado.
Um legado poético de Lewis
A descoberta e apreciação da Suíte Narniana nos permite compreender ainda mais profundamente a genialidade criativa de C.S. Lewis. Estes poemas demonstram sua habilidade extraordinária de:
- Criar vozes poéticas distintas e autênticas para diferentes culturas fantásticas.
- Integrar conhecimento musical técnico em estruturas poéticas.
- Expandir seu universo ficcional através de múltiplas formas artísticas.
- Capturar a essência única de suas criaturas fantásticas através do ritmo e da sonoridade.
Conclusão
As marchas da Suíte Narniana são verdadeiras obras de arte que combinam poesia, música e narrativa de forma magistral. Elas revelam camadas adicionais da mestria literária de Lewis e demonstram que o mundo de Nárnia é ainda mais rico e complexo do que as próprias crônicas sugerem.
Para os fãs das Crônicas de Nárnia, essas composições oferecem uma janela única para a mente criativa de Lewis e uma oportunidade de experimentar Nárnia através de uma lente completamente nova. Elas nos lembram que grandes mundos fantásticos não existem apenas nas páginas de seus livros principais, mas se estendem através de cada aspecto da visão criativa de seus autores.
Você pode encontrar estes e outros poemas completos no livro Poems, disponível na Amazon. E infelizmente ainda não traduzido ao português.
Com informações do NarniaWeb.