C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien não foram apenas escritores; foram verdadeiros arquitetos de grandes mitos, criadores de universos que definiram a fantasia moderna e continuam a ecoar na alma de milhões de fãs em todo o mundo. Nárnia e Arda (o mundo que contém a Terra Média) são mais do que cenários para aventuras; são paisagens que revelam verdades sobre nosso mundo, onde a criação, a natureza do mal e a esperança de redenção são exploradas com uma profundidade moldada em seu âmago pela fé cristã compartilhada por seus autores.
Um dos fios condutores mais fascinantes em ambos os universos é o papel primordial da música – a harmonia divina que ordena o cosmos, e a dissonância nesta canção introduzida pelo mal. Ao comparar como Lewis e Tolkien tecem esses temas, revelamos não apenas visões de mundo convergentes, mas também abordagens distintas sobre como a fantasia pode iluminar as verdades espirituais mais profundas sobre o mundo.
A sinfonia da Criação
Tanto em Nárnia quanto em Arda, a própria existência do universo nasce de um ato musical, uma poderosa metáfora para a Criação divina no Gênesis vista como ordenada, bela e intencional. Profundamente envoltos na tradição cristã, ambos escolhem uma metáfora parecida para apresentar o processo de florescimento de seus universos particulares.
Em “O Sobrinho do Mago“, testemunhamos a criação de Nárnia através da canção de Aslam. O Grande Leão canta, e da sua melodia surgem estrelas, luz, terra, flora e fauna. A música não é apenas um acompanhamento descritivo da cena, mas a própria força criadora através da qual Aslam exerce sua vontade e poder. Esta imagem ressoa profundamente com a narrativa de Gênesis, onde Deus cria o mundo através da Palavra (“Haja luz”, Gênesis 1:3), e com a teologia joanina, que apresenta Cristo como o Logos – a Palavra eterna através da qual e para a qual tudo foi criado (João 1:1-4). A canção de Aslam, portanto, é a forma como Lewis escolheu para representar esse Logos criador.
De forma semelhante, mas em uma escala cósmica ainda mais vasta e cheia de detalhes, Tolkien descreve em “O Silmarillion” a criação de Arda através da Música dos Ainur. Eru Ilúvatar, o Ser Supremo do universo de Tolkien, propõe temas musicais aos Ainur (seres angélicos), e a execução harmoniosa dessa Grande Música dá forma e substância ao universo. A música aqui é a matriz da realidade, o projeto divino desdobrando-se em existência. A ordem, a beleza e as leis que regem Arda são inerentes à harmonia original concebida por Eru.
Em ambas as cosmogonias, a música é fundamento da realidade, refletindo uma visão profundamente cristã da criação como um ato de ordem divina emanado da mente e da vontade do Criador.
A dissonância na música
Se a criação é harmonia, o mal é a dissonância que a perturba. No entanto, Lewis e Tolkien apresentam a origem e a natureza dessa dissonância de maneiras distintas. Em Nárnia, o mal primordial é personificado em Jadis, a Feiticeira Branca. Crucialmente, Jadis não é uma criação de Aslam dentro de Nárnia; ela é uma intrusa, trazida acidentalmente de seu mundo moribundo, Charn, que já havia sido destruído após ela pronunciar a Palavra Execrável, que muitos entendem que é uma metáfora de Lewis para uma espécie de inverno nuclear que desolou o mundo de Charn. Sua chegada representa uma espécie de invasão externa, uma força alienígena que impõe o inverno eterno e a tirania sobre um mundo originalmente bom. O mal, aqui, é uma contaminação que aflige a boa criação de fora. Isso reflete a ideia teológica de que o pecado e o mal são uma corrupção que entra no mundo, mas não são parte de sua essência original, permitindo a possibilidade de purificação e redenção pela intervenção divina – simbolizada pelo sacrifício e ressurreição de Aslam.
Tolkien, por outro lado, tece uma visão mais trágica e internalizada do mal. Melkor (mais tarde conhecido como Morgoth), o mais poderoso dos Ainur, introduz a dissonância na Grande Música a partir de dentro dela mesmo, durante a execução da melodia. Sua tentativa de tecer seus próprios temas, nascida do orgulho e do desejo de dominar, não apenas cria cacofonia, mas corrompe ativamente a própria estrutura da criação. O mal em Arda não é primariamente um invasor, mas uma rebelião interna, um desvio da vontade divina originado na liberdade concedida à criatura. A queda de Melkor, e mais tarde a de seu servo Sauron, ecoa a narrativa bíblica da queda de Lúcifer – um ser de grande poder que escolhe a autoafirmação em detrimento da harmonia com o Criador. Essa visão enfatiza a capacidade da livre vontade de gerar o mal e como essa escolha pode macular profundamente a criação, tornando a redenção um processo longo e árduo.
Em ambas as versões da origem do mal, no entanto, há a afirmação cristã de que o mal é a corrupção do bem, e não existe como entidade em si. Como Tolkien afirma:
“O mal não pode criar coisa alguma; ele apenas pode corromper e destruir o que os outros fizeram.”
Ecos bíblicos
A influência da fé cristã permeia ambas as obras, mas se manifesta de maneiras diferentes. Lewis emprega uma alegoria mais direta e explícita. Para Lewis, Aslam não é Cristo, mas um exercício imaginativo do que aconteceria se houvesse um mundo como Nárnia onde Ele também encarnasse. Dessa forma, seu sacrifício voluntário na Mesa de Pedra para salvar o traidor Edmundo é um paralelo direto da Expiação, e sua ressurreição, que quebra a Mesa e traz a primavera, espelha a vitória de Cristo sobre a morte e o pecado. Já “A Última Batalha” oferece uma alegoria do Apocalipse e do Juízo Final. Lewis portanto usa a fantasia como um veículo para comunicar verdades teológicas centrais de forma acessível.
Tolkien, embora profundamente católico, evitava a alegoria direta, preferindo tecer sua fé na própria tecelagem de seu mundo através da alusão e da “subcriação”. Ele acreditava que os seres humanos, feitos à imagem de um Deus Criador, têm um impulso inato para criar mundos secundários que refletem, ainda que de forma imperfeita, a verdade e a beleza da Criação primária. Temas como a Providência divina agindo sutilmente na história (a jornada de Frodo e a queda de Gollum na Fenda da Perdição como uma eucatástrofe – uma súbita e feliz reviravolta), a luta contra o pecado (o poder corruptor do Anel), a esperança na escuridão e a nobreza do sacrifício permeiam a Terra-média. A verdade cristã está embutida na história, embora não representada ponto a ponto. Tolkien buscava criar um mundo que fosse experimentado em um nível profundo e que revelasse verdades profundas sobre o cristianismo ao apenas existir como um organismo vivo e real, permitindo que os leitores encontrassem ecos e “aplicabilidade” à sua própria experiência.
Este era um dos pontos de maior divergência entre os dois autores, ainda que isso não impediu sua amizade e o incentivo um ao outro.
Conclusão
Lewis e Tolkien, amigos e colegas nos Inklings, ofereceram ao mundo visões fantásticas que, embora nascidas da mesma fé fundamental, seguiram caminhos criativos distintos.
Ambos usaram a música como símbolo primordial da ordem divina e exploraram a natureza disruptiva do mal. E é provável que um possa ter influenciado o outro nesta questão, mas a música como algo que ordena o universo é algo que ambos encontraram na tradição medieval, como Lewis expôs em seu livro “A imagem descartada“.
Dessa forma, suas obras demonstram o poder extraordinário da fantasia não apenas para entreter, mas para sondar as questões mais cruciais da existência humana – criação, corrupção, sacrifício e a esperança inextinguível da redenção.