Por que Tolkien não gostava de Nárnia

J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis são dois dos mais influentes autores de fantasia do século XX. Sua amizade, marcada por profundo respeito mútuo e discussões intelectuais, é um fascinante capítulo da história literária. Ambos membros do grupo literário Os Inklings, eles compartilhavam um amor pela mitologia e fantasia, mas tinham abordagens distintas em suas obras.

Visões divergentes sobre fantasia

Tolkien via a fantasia como uma forma de “subcriação” ou “co-criação”, uma expressão da imagem divina no homem. Para ele, a fantasia tinha o poder de oferecer escape, recuperação e consolo. Em seu ensaio “Sobre Contos de Fadas”, disponível no Brasil no livro “Árvore e Folha”, Tolkien introduziu o conceito de “eucatástrofe”, que ele definia como “a boa catástrofe, a virada súbita e alegre” na narrativa. Ele via isso como o ápice de uma história de fantasia, oferecendo “um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além das muralhas do mundo, pungente como o pesar”.

Lewis, por sua vez, via a fantasia também como um meio de explorar verdades espirituais e morais. Em seu ensaio “Três formas de escrita para crianças”, ele argumentava que a fantasia podia “roubar passado os dragões” da mente do leitor, permitindo que verdades importantes fossem compreendidas de novas maneiras.

A questão das alegorias

Apesar de suas afinidades, Tolkien tinha reservas significativas em relação às “Crônicas de Nárnia” de Lewis. Tolkien criticava a mistura ‘incongruente’ de mitologias e símbolos religiosos em Nárnia. Para ele, a presença de figuras como Papai Noel ao lado de faunos, dragões e outras criaturas mitológicas representava uma falta de coerência interna.

Tolkien, um perfeccionista na construção de mundos, preferia uma abordagem mais coerente e meticulosa. Ele também discordava do uso explícito de alegoria por Lewis: Tolkien, um católico devoto, preferia uma abordagem mais sutil e implícita, onde a religião estivesse entrelaçada com a narrativa de forma natural e simbólica, sem impor uma interpretação específica ao leitor. Tolkien escreveu em 1971 a Eileen Elgar: “Eu não gosto de alegoria, e menos ainda de alegoria religiosa deste tipo. Mas isso é uma diferença de gosto que nós reconhecemos e que não interferiu em nossa amizade.”

As críticas de Tolkien a Nárnia

As objeções de Tolkien às “Crônicas de Nárnia” eram multifacetadas e revelavam diferenças fundamentais em suas abordagens à literatura fantástica:

  1. Excesso de alegorias: Apesar de ter usado em doses menores, Tolkien era conhecido por sua aversão à alegoria explícita. Ele acreditava que ela limitava a interpretação do leitor e diminuía o poder da história. Em Nárnia, a figura de Aslam como uma representação direta de Cristo era, para Tolkien, demasiadamente óbvia e didática.
  2. Inconsistência mitológica: A mistura de elementos de diferentes mitologias e tradições em Nárnia era algo que incomodava profundamente Tolkien. Ele criticava a presença de criaturas da mitologia grega (como faunos e dríades) ao lado de figuras do folclore nórdico e personagens cristãos. Para Tolkien, isso criava um mundo inconsistente e “bagunçado”.
  3. Abordagem infantil: Tolkien considerava que Lewis simplificava demais seus conceitos para um público infantil. Ele acreditava que a fantasia deveria ser igualmente acessível e profunda para leitores de todas as idades, sem necessidade de “infantilizar” o conteúdo.
  4. Uso de elementos familiares: Tolkien ficou particularmente incomodado com o uso que Lewis fez de algumas ideias que Tolkien havia compartilhado com ele. 
  5. Falta de profundidade linguística: Como filólogo, Tolkien dava grande importância à criação de línguas e à etimologia em seus mundos fictícios. Ele considerava que o trabalho de Lewis em Nárnia carecia dessa profundidade linguística.

Um exemplo específico da crítica de Tolkien pode ser visto em sua reação ao livro “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”. Foi relatado que quando Lewis apresentou os primeiros capítulos a ele, Tolkien ‘desgostou intensamente’.

Ainda assim, na carta que escreveu em 1971 ele afirmou que se alegrava de que sua correspondente estava descobrindo Nárnia, e que era uma história merecidamente popular, apesar dele não gostar tanto. Além disso, Tolkien deu cópias de Nárnia a sua neta antes mesmo de dar uma cópia de seus livros.  

Elogios mútuos

Apesar das críticas, Lewis e Tolkien admiravam profundamente as obras um do outro. Lewis foi um dos primeiros e mais entusiasmados apoiadores de “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis“. Ele chegou a escrever uma resenha elogiosa de “O Hobbit” para o Times Literary Supplement, chamando-o de “um livro que permanecerá muito depois que nossos tempos atuais forem esquecidos”. Sobre “O Senhor dos Anéis”, Lewis escreveu: “Aqui estão belezas que perfuram como espadas ou queimam como ferro frio. Aqui está um livro que romperá, talvez, o coração de muitos.”

É notável como, mesmo com suas divergências literárias e religiosas, os dois conseguiram manter um relacionamento de respeito e admiração. Tolkien nunca deixou de reconhecer o talento de Lewis e, embora não apreciasse Nárnia, valorizava a popularidade e a influência positiva que a obra tinha sobre o público.

A profundidade desta amizade foi evidente até o final, como evidenciado pela presença de Tolkien no velório de Lewis em 1963. A perda de Lewis foi um golpe duro para Tolkien, que fez questão de honrar a memória do amigo, demonstrando que, apesar de todas as divergências, o respeito e o afeto entre eles eram genuínos.

Conclusão

A amizade entre Tolkien e Lewis é um testemunho de como diferenças significativas podem coexistir com um relacionamento duradouro e respeitoso. Suas discussões e divergências enriqueceram não apenas suas próprias obras, mas também nossa compreensão da literatura fantástica e seu poder de transmitir verdades profundas. A amizade entre esses dois gigantes da literatura nos lembra que, no fim das contas, o respeito mútuo e a empatia podem superar as diferenças mais profundas. Suas divergências sobre Nárnia, longe de enfraquecer sua amizade, serviram para aprofundar suas reflexões sobre a natureza e o propósito da literatura fantástica, contribuindo para o rico legado que ambos deixaram no gênero.

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