Ayn Rand e C.S. Lewis são dois dos pensadores mais influentes do século XX, mas suas filosofias representam mundos diametralmente opostos. Rand, defensora ferrenha do ateísmo e do individualismo, e Lewis, apologista cristão, basearam suas obras em princípios que contradizem profundamente um ao outro. O contraste entre suas ideias não se limita apenas às suas obras publicadas, mas se revela de forma particularmente visceral nas anotações marginais de Rand sobre a obra de Lewis, “A Abolição do Homem“.
Contexto dos Autores
Ayn Rand nasceu na Rússia em 1905 e imigrou para os Estados Unidos em 1926. Sua filosofia, chamada Objetivismo, rejeita qualquer forma de sobrenaturalismo, incluindo a religião, e coloca a razão como o único meio válido de adquirir conhecimento. Para Rand, a liberdade individual e a busca do próprio interesse racional são essenciais para a prosperidade humana. Obras como “A Nascente“, “A virtude do egoísmo” e “A revolta de Atlas” expressam esses valores, tornando-a uma das vozes mais proeminentes do pensamento liberal e capitalista do século XX.
C.S. Lewis, por sua vez, nasceu na Irlanda em 1898 e foi um acadêmico, escritor e apologista cristão. Inicialmente ateu, Lewis passou por uma conversão que o levou a defender o cristianismo ao longo de sua carreira. Suas obras incluem tanto ficção, como as famosas “Crônicas de Nárnia”, quanto ensaios filosóficos e teológicos, como “Cristianismo puro e simples” e “A Abolição do Homem”. Para Lewis, a moralidade e os valores tradicionais eram fundamentais para a construção de uma vida plena e ética, e sua visão de mundo estava profundamente imersa na fé cristã.
O Embate Filosófico: Razão, Fé e Moralidade
A visão de Lewis
Em “A Abolição do Homem”, Lewis defende a importância dos valores tradicionais, que ele chama de “Tao”, e argumenta que, mesmo aqueles que tentam rejeitar esses valores, estão, na verdade, derivando suas próprias ideias de uma versão do “Tao”. Lewis escreve:
“Se ele tivesse realmente começado do zero, completamente fora da tradição humana de valores, nenhum malabarismo poderia tê-lo avançado um centímetro em direção à concepção de que um homem deveria morrer pela comunidade ou trabalhar para a posteridade.” [p. 27]
Para Lewis, sem essa base moral, a humanidade perde a sua essência e se torna sujeita aos impulsos irracionais.
A rejeição veemente de Rand à tradição moral
As anotações marginais de Rand revelam uma rejeição não apenas intelectual, mas profundamente emocional às ideias de Lewis. Ao comentar a passagem onde Lewis argumenta que valores como morrer pela comunidade derivam do “Tao”, Rand escreve sarcasticamente: “Aposto que ele não consegue imaginar mesmo!!”, indicando sua crença de que tais valores não são universais nem necessários.
Rand não vê os valores tradicionais como uma ferramenta de libertação, mas como obstáculos ao progresso individual. Suas notas marginais deixam claro que ela considera a visão de Lewis sobre moralidade tradicional como uma forma de misticismo. Quando Lewis fala sobre a obediência aos valores do “Tao”, Rand anota com desprezo: “O ‘racional’ para ele é a fé cega!”.
Ciência e Progresso
Lewis expressa preocupações sobre o uso do poder humano sobre a natureza sem um fundamento moral adequado:
“Cada novo poder conquistado pelo homem é também um poder sobre o homem. Em cada vitória, além de ser o general que triunfa, ele é também o prisioneiro que segue o carro triunfal.” [p. 37]
A reação de Rand a esta passagem é particularmente reveladora:
“Então, quando você cura homens de tuberculose, sífilis, escorbuto, varíola e raiva – você os torna mais fracos!!!”
Para Rand, a ciência e o progresso tecnológico representam a expansão da liberdade humana, não uma ameaça como Lewis sugere. Ela vê os avanços científicos como inequivocamente benéficos, rejeitando categoricamente as preocupações éticas de Lewis como irracionalidade e misticismo.
Sua indignação é particularmente aguda quando Lewis compara a ciência moderna à magia:
“O empreendimento mágico sério e o empreendimento científico sério são gêmeos: um estava doente e morreu, o outro forte e prosperou. Mas eram gêmeos. Nasceram do mesmo impulso.” [pp. 47-48]
Rand responde com desprezo. E quando Lewis sugere que a ciência moderna nasceu em uma “vizinhança insalubre”, ela escreve: “Pode apostar sua vida, seu maldito místico derrotado da Renascença!”.
O Conceito de Razão: Uma Perspectiva Irreconciliável
A crítica mais fundamental de Rand à obra de Lewis é sua visão sobre a razão. Para Rand, a razão é a ferramenta mais poderosa que o homem possui e não deve ser subordinada à fé ou à moralidade tradicional. Quando Lewis argumenta:
“Ou somos espírito racional obrigado para sempre a obedecer aos valores absolutos do Tao, ou então somos mera natureza a ser amassada e cortada em novas formas para o prazer de mestres que devem, por hipótese, não ter outro motivo senão seus próprios impulsos ‘naturais’.” [p. 46]
Rand responde com uma rejeição visceral:
“O bastardo miserável que é um batedor de carteiras de conceitos, não um ladrão, que é uma palavra grande demais para ele. Ou somos místicos do espírito ou místicos do músculo – razão? Quem já ouviu falar disso?”
Lewis acreditava que, sem uma base moral transcendental, a razão poderia facilmente se corromper. Rand via essa posição como uma renúncia à autonomia humana e uma submissão irracional à tradição.
A visão de Rand sobre a natureza humana
Lewis e Rand divergem fundamentalmente sobre a natureza humana. Lewis acreditava que, sem valores morais transcendentes, os seres humanos cairiam em uma existência irracional e destrutiva. Ele argumenta que aqueles que rejeitam a tradição “não são homens, são artefatos. A conquista final do homem provou ser a abolição do Homem.” [p. 41]
A resposta de Rand é contundente: “Significa que se você escolher seus próprios valores e abandonar a fé cega, você é um ‘artefato’!”.
Para Rand, o ser humano é essencialmente racional e capaz de criar seu próprio destino, independentemente de qualquer fé ou moralidade imposta. Em sua anotação final sobre o livro de Lewis, ela resume o que considera a essência do argumento dele:
“O bastardo na verdade quer dizer que quanto mais o homem sabe, mais ele está limitado pela realidade, mais ele tem que obedecer a uma existência ‘A é A’ de identidade absoluta e causalidade – e isso é o que ele considera como ‘rendição’ à natureza, ou como o ‘poder da natureza sobre o homem.’ (!) O que ele objeta é o poder da realidade. A ciência reduz o reino do seu capricho. (!!) Quando ele fala de julgamentos de valor, ele significa valores estabelecidos por capricho – e ele sabe que não há lugar para isso na natureza, ou seja, na realidade. (A escória abissal!)”
Conclusão
O embate filosófico entre Rand e Lewis continua a ressoar no pensamento contemporâneo, refletindo as tensões entre o individualismo radical e a moralidade tradicional. A natureza visceral das anotações marginais de Rand demonstra não apenas um desacordo intelectual, mas um profundo antagonismo emocional às ideias que Lewis representa.
Enquanto Rand via a razão como soberana e suficiente para guiar a vida humana, Lewis considerava a razão uma ferramenta necessária, mas limitada, que precisava ser guiada, entre outras coisas, por valores morais universais. Este conflito fundamental sobre o papel da razão, da fé e da moralidade na construção de uma sociedade continua a moldar debates filosóficos até os dias atuais.
Com informações do Lewisiana.