“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” (Everything everywhere at once, 2022) não é um filme cristão. Seus criadores, os irmãos Daniels, não tinham intenção evangelística, e sua cosmovisão influenciada pelo existencialismo ateu abraça a premissa de que “nada importa” como ponto de partida para criar significado. No entanto, paradoxalmente, o filme ressoa com verdades cristãs fundamentais de maneiras que seus próprios criadores talvez nem tenham percebido completamente. Ironicamente, há algo profundamente inquietante na lógica moral do filme – uma tensão que aponta para realidades transcendentes que o existencialismo secular não consegue sustentar.
Amor sacrificial em um universo sem sentido?
O coração narrativo do filme reside no amor sacrificial de Evelyn por sua filha Joy. Quando confrontada com o niilismo absoluto representado pelo “Bagel de Tudo” – uma metáfora visual para o vazio existencial – Evelyn não escolhe a indiferença lógica que sua filosofia exigiria. Em vez disso, ela se lança através do multiverso, arriscando sua própria existência para salvar sua filha Joy da auto aniquilação. De onde vem o impulso de arriscar tudo por outra pessoa?
Esta escolha revela uma fissura fundamental na lógica existencialista do filme. Se verdadeiramente “nada importa”, por que Evelyn lutaria tão desesperadamente? Por que não simplesmente aceitar que Joy escolha o ‘nada’? A resposta é que o filme quer tentar trazer uma base subjetiva para valores como amor e bondade, mas só consegue embasar isso se houver valores objetivos.
O amor materno de Evelyn ecoa o que os teólogos cristãos reconhecem como agape – um amor que não depende do mérito do receptor, mas da natureza do doador. Quando Evelyn declara “Eu sou sua mãe” enquanto abraça a Jobu Tupaki, a versão antagonista e vilanesca da sua filha, ela está fazendo mais do que uma afirmação identitária, ou falando de uma mera relação biológica; ela está proclamando uma realidade relacional que transcende circunstâncias, universos e até mesmo as escolhas destrutivas de Joy.
Por que existe eucatástrofe no Multiverso?
J.R.R. Tolkien cunhou o termo “eucatástrofe” para descrever o “giro feliz repentino” que caracteriza os grandes contos de fadas – aquele momento quando, na hora mais escura, surge uma reviravolta inesperada que traz esperança e redenção. Tudo em todo lugar ao mesmo tempo não foge disso, e é estruturalmente uma eucatástrofe épica.
O filme atinge seu ponto mais sombrio quando tanto mãe quanto filha são reduzidas a pedras em um universo estéril, comunicando-se apenas por texto na tela. É neste momento de máxima desolação – quando até mesmo a linguagem falada foi removida – que ocorre a primeira conexão genuína entre elas. Mesmo no mais maluco dos multiversos, onde tudo é possível há algo mais que transcende isso: ainda há o amor.
A eucatástrofe narrativa do filme não vem através de poderes multiversais ou violência, mas através do simples ato de uma mãe seguindo sua filha até o abismo e recusando-se a abandoná-la.
Se a premissa do filme quer trazer a perca no infinito número de possibilidades que faz com que qualquer caminho perca seu valor, ele se confronta com outra realidade justamente aqui: o amor transcende todos os universos. Fazendo dele a base multiversal.
Tolkien acreditava que as eucatástrofes em contos de fadas eram ecos da Grande Eucatástrofe da história humana – a ressurreição de Cristo. No filme, embora os criadores não tivessem intenção cristã, eles criaram inadvertidamente uma parábola sobre como o amor sacrificial pode alcançar até mesmo aqueles que abraçaram o niilismo total. Como Cristo desceu ao inferno pelos perdidos, Evelyn desce ao vazio existencial por Joy.
Mas ainda temos mais do que isso: se realmente há algo que transcende o multiverso, e este ‘algo’ é o amor. Será que não há uma Pessoa, um Deus, que também sustenta e se descreve como Amor (1 João 4)?
A Elfolândia de Chesterton já previa o roteiro do filme
No livro Ortodoxia, autor britânico G.K. Chesterton falava da “Elfolândia” – aquele reino da imaginação onde tudo parece diferente, onde aparentemente não há limites, mas ainda assim, a magia tem regras, o paradoxo coexiste com a lógica, e o assombroso revela verdades profundas sobre a realidade. Para Chesterton, a imaginação não era fuga da verdade, mas um caminho em direção a ela. Existe uma ‘ética’ na Elfolândia, algo que revela que, mesmo em um mundo completamente imaginário e diferente, ainda assim há sendo de justiça e valores como o amor.
Tudo em todo lugar ao mesmo tempo constrói sua própria “Elfolândia” através do multiverso, onde Evelyn pode ser qualquer coisa – de uma estrela de cinema de kung fu a uma pedra em um deserto. No entanto, mesmo neste reino de possibilidades infinitas, certas verdades morais permanecem constantes. Evelyn não pode simplesmente escolher não amar Joy. O mal de Jobu Tupaki é reconhecido como mal, independentemente do universo. A bondade de Waymond ressoa através de todas as suas versões multiversais.
Esta consistência moral aponta para o que Chesterton chamaria de uma realidade transcendente – algo que governa até mesmo mundos imaginários. Como ele observou, mesmo nos contos de fadas mais fantásticos, “se as Irmãs Feias são mais velhas que a Cinderela, então é necessário que a Cinderela seja mais jovem que as Irmãs Feias.” A lógica moral funciona da mesma forma.
Lewis e a saudade de casa
C.S. Lewis identificou em toda experiência humana um anseio profundo que ele chamou de sehnsucht – uma saudade por algo que este mundo não pode satisfazer. Este anseio, argumentava Lewis, é evidência de que fomos feitos para outro mundo.
Tudo em todo lugar ao mesmo tempo é permeado por ecos desta saudade. Evelyn anseia por conectar-se genuinamente com sua família. Joy anseia por aceitação e compreensão. Waymond anseia por harmonia e bondade em um mundo caótico. Mesmo Gong Gong anseia por tradições familiares que honrem o passado enquanto abraçam o futuro.
O que é notável é que mesmo com um multiverso infinito de possibilidades à disposição, os personagens não encontram satisfação última em nenhuma versão alternativa de suas vidas. Não porque estas coisas não tenham bondade, mas porque não é a bondade última. A Evelyn que é uma estrela de cinema de kung fu ainda sente vazio. A que tem dedos de salsicha ainda luta com relacionamentos. A satisfação e a realização final (o que a Bíblia chama de shalom) vem apenas quando eles aprendem a valorizar e amar uns aos outros em sua realidade imperfeita e mundana.
O ‘problema do bem’
Tudo em todo lugar ao mesmo tempo enfrenta inadvertidamente um dos desafios centrais do existencialismo secular: como manter valores morais significativos se toda verdade é subjetivamente construída. O filme quer nos dizer que podemos escolher criar significado, esta é sua resposta no terceiro e último ato, mas suas próprias escolhas narrativas revelam uma moralidade que transcende a construção individual.
Já vimos que o Waymond representa bondade pura de uma forma que ressoa através de todos os universos, e que sua filosofia – “devemos ser gentis” – não é apresentada como uma preferência pessoal, mas como uma verdade moral que deve ser abraçada independentemente das circunstâncias. Quando Evelyn finalmente aceita esta visão, isso não é mostrado como ela escolhendo criar significado, mas como ela descobrindo uma verdade que já existia.
Esta tensão aponta para o que os apologetas cristãos há muito argumentam: valores morais objetivos exigem um fundamento transcendente. O filme não pode explicar satisfatoriamente por que a bondade é “melhor” que a crueldade em um universo verdadeiramente sem sentido, mas procede como se esta diferença fosse real e significativa.
Este é o ‘problema do bem’ que os defensores do niilismo precisam enfrentar.
Conclusão
Tudo em todo lugar ao mesmo tempo não é um filme cristão, mas é um filme que inadvertidamente testemunha verdades cristãs. Sua exploração do amor sacrificial, sua estrutura eucatastrófica, seu reconhecimento de valores morais transcendentes, e sua incapacidade de encontrar satisfação última em qualquer realidade criada – tudo isso aponta além de si mesmo para realidades que o cristianismo articula explicitamente.
Como Chesterton, Tolkien e Lewis compreenderam, a imaginação humana, mesmo quando não intencionalmente cristã, frequentemente tropeça em verdades sobre Deus porque fomos criados à Sua imagem. Nossa capacidade de criar e apreciar histórias sobre amor redentor, nossa fome por significado transcendente, nossa intuição de que a bondade é objetivamente melhor que o mal – estas não são acidentes evolutivos, mas ecos da eternidade plantados em corações humanos.
Em última análise, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo demonstra que não podemos escapar das realidades fundamentais da condição humana, não importa quantos universos alternativos imaginemos. E essas realidades fundamentais – nossa necessidade de amor, nosso anseio por significado, nossa intuição de valor moral objetivo – todas apontam, como C.S. Lewis diria, para além da muralha do mundo em direção Àquele que é o verdadeiro centro de todas as possibilidades.