C. S. Lewis, amplamente conhecido por sua imaginação poderosa e profundidade teológica, considerava Até Que Tenhamos Rostos sua melhor obra de ficção. Publicado em 1956, este romance é uma releitura do mito grego de Cupido e Psiquê — mas sob uma perspectiva surpreendente: a da irmã mais velha e “feia”, Orual. Ao assumir esse ponto de vista, Lewis transforma um conto clássico de beleza e amor em uma profunda meditação sobre identidade, desejo, fé e redenção.
Lewis passou mais de três décadas refletindo sobre o mito. Em sua versão, Orual é rainha de Glome e ama profundamente sua irmã Psiquê — a bela e virtuosa jovem que, segundo a lenda, desperta o amor de um deus invisível e a inveja dos mortais. Orual também ama Raposa, seu mentor grego, símbolo da sabedoria racionalista, e Bardia, o fiel guerreiro de seu reino. No entanto, um a um, esses amores lhe são “tirados” pela ação dos deuses e pelo fluxo inevitável da vida. Sentindo-se traída, Orual cobre o rosto com um véu e mergulha na administração do reino como forma de fugir da dor, perdendo-se no papel de soberana e sufocando sua verdadeira identidade.
Dessa trama simbólica e densa, emergem três lições centrais — não apenas para os leitores de Lewis, mas para qualquer pessoa em busca de significado mais profundo na vida.
1. O Amor e os amores
“Dizem que amar e devorar são a mesma coisa, não dizem?”
Uma das principais tensões da obra é a distinção entre o amor verdadeiro e o amor possessivo. Por meio da deusa Ungit (equivalente a Afrodite), Lewis retrata um amor carnal e devorador — um amor que exige, consome e controla. Orual, que inicialmente parece crítica a esse tipo de amor, percebe mais tarde que ela mesma ama Psiquê de maneira sufocante. Embora estivesse disposta a sacrificar-se por amor, ela também exigia exclusividade e submissão.
Lewis nos convida a refletir sobre a natureza dos nossos afetos: será que amamos para o bem do outro, ou apenas para preencher nossos próprios vazios? O verdadeiro amor liberta, eleva e transforma. O amor possessivo, por outro lado, fere e aprisiona. É uma advertência contra idolatrar aqueles que amamos — pois quando o outro se torna nosso “deus”, exigimos dele o que só Deus pode oferecer.
“O amor, tendo se tornado um deus, torna-se um demônio.” C. S. Lewis em Os quatro amores.
2. A máscara da Rainha
“A rainha de Glome ocupou a maior parte de mim, enquanto Orual foi ocupando cada vez menos.”
Diante das perdas e dores, Orual esconde seu rosto com um véu e assume plenamente seu papel de governante. Como rainha, torna-se admirada, respeitada, temida — mas também cada vez mais distante de si mesma. O véu não oculta apenas o rosto, mas a alma.
Lewis utiliza essa metáfora para tratar da dissociação entre identidade e função. Muitos de nós, como Orual, escondemos nossas feridas sob máscaras sociais: o profissional bem-sucedido, o religioso exemplar, o líder forte. No entanto, quando não somos capazes de encarar quem somos sem esses papéis, tornamo-nos sombras de nós mesmos. Até Que Tenhamos Rostos nos chama à autenticidade: a verdadeira cura começa quando ousamos remover o véu e nos apresentar, feridos e imperfeitos, diante de Deus e de nós mesmos.
Em Cristianismo Puro e Simples, Lewis aprofunda essa reflexão sobre as máscaras que vestimos. Ele argumenta que o que chamamos de “eu mesmo” é, muitas vezes, apenas um amálgama de nossas heranças, criações e desejos naturais. O verdadeiro “eu”, a personalidade autêntica, só começa a emergir quando nos entregamos a algo maior que nós. Como ele explica, “é só quando me volto para Cristo, só quando abro mão de mim mesmo para entregar-me à sua Pessoa que começo a ter uma personalidade realmente minha.”
“Quando virmos a face de Deus, saberemos que sempre o conhecemos.” C. S. Lewis em Os quatro amores.
3. Um novo Rosto
“Tu és a própria resposta. Diante do teu rosto, as perguntas desaparecem.”
No clímax da narrativa, Orual finalmente é “respondida” pelos deuses — mas não da forma como esperava. Sua longa acusação contra os deuses se revela, no fundo, uma acusação que mostra como ela havia usado a máscara errada este tempo todo. Sua transformação ocorre quando, ao apresentar sua queixa sincera, ela é levada a um encontro com o divino. E nesse encontro, a resposta não vem em palavras, mas na presença: no rosto do Deus desconhecido.
Essa é uma das mais belas expressões da teologia de Lewis. Em vez de uma solução intelectual ou de um argumento teológico, o que cura Orual é o amor que vê e permite ser visto. É o encontro com a Verdade encarnada. O ‘Deus que me vê’ relatado por Hagar aparece aqui (Gênesis 16). Como ele próprio escreve em um dos trechos mais citados do livro:
“Sei agora, Senhor, por que não me deste nenhuma resposta. Tu és a própria resposta. Diante do teu rosto, as perguntas morrem. Que outra resposta seria suficiente? Somente palavras, palavras; que devem ser levadas para lutar com outras palavras. Eu te odiei por muito tempo, te temi por muito tempo.”
Esse momento remete à experiência de Jó no Antigo Testamento: após muitos questionamentos, o que resta é a visão do Senhor como Ele realmente é. O encontro com Deus — não apenas ideias sobre Deus — é o que transforma.
Um mito que aponta para a Verdade
C. S. Lewis acreditava que os mitos, ainda que ficcionais, são capazes de transmitir verdades profundas sobre a condição humana e o desejo por Deus. Para ele, o mito de Psiquê era uma dessas histórias que, mesmo sem ligação com o cristianismo, tocava as realidades eternas.
Em Até Que Tenhamos Rostos, Lewis une mitologia, filosofia e teologia cristã numa obra que questiona as formas distorcidas de amor, denuncia as máscaras que usamos e aponta para a redenção como fruto do encontro verdadeiro com Deus. Trata-se de uma meditação não apenas sobre fé, mas sobre a formação da alma humana.
Conclusão
Orual representa cada um de nós em nossa jornada: feridos, confusos, desejosos de amor e verdade, mas muitas vezes cegos por nossas próprias ilusões. Seu caminho de dor se torna, paradoxalmente, um caminho de revelação. E sua história nos lembra que apenas quando tivermos “rosto” — identidade, humildade, e disposição para o encontro com o Senhor — estaremos prontos para ver a Deus e, finalmente, compreender. Assim como apontado por Agostinho de Hipona, por João Calvino e por tantos outros pensadores cristãos, o conhecimento de nós mesmos depende de nosso conhecimento de Deus. É quando finalmente somos ‘revestidos de Cristo’ que podermos, com as novas vestes e um novo rosto, poder enxergar a verdade transformadora sobre quem nós somos, porque Deus é.
Que esta obra nos encoraje a amar melhor, remover nossos véus e buscar, com toda a alma, o Rosto daquele que é a própria resposta.



