O amor de Tolkien e Edith: a história real por trás de Beren e Lúthien

“Naqueles dias, seu cabelo era negro, sua pele clara, seus olhos mais brilhantes do que você se lembra, e ela podia cantar – e dançar.” — J.R.R. Tolkien, carta ao filho Christopher, 1972

Muito antes de O Senhor dos Anéis conquistar o mundo, muito antes de Frodo partir do Condado ou Aragorn reivindicar o trono de Gondor, havia uma história de amor que moldaria os próprios alicerces da Terra-média. Esta não é apenas mais uma lenda fantástica nascida da imaginação: é o reflexo lírico, quase mítico, do amor mais profundo e verdadeiro que J.R.R. Tolkien conheceu em sua vida. A história de Beren e Lúthien — um dos três “Grandes Contos dos Dias Antigos” — é aquela em que realidade e mito se entrelaçam com mais força e ternura, onde a vida inspira a ficção e a ficção eterniza a vida.

A história de Beren e Lúthien

No coração da Primeira Era da Terra-média, quando as árvores de Valinor ainda brilhavam e Morgoth espalhava sua sombra sobre Beleriand, nasceu o amor mais impossível e sublime do legendário tolkieniano. Beren, filho de Barahir, último sobrevivente de sua casa devastada, vagava solitário pelas florestas quando sua vida mudou para sempre. Em uma clareira de Doriath, ele viu Lúthien Tinúviel — a elfa de beleza incomparável, filha do Rei Thingol e da maiar Melian — dançar entre as árvores como se toda a música do mundo emanasse de seus movimentos.

Aquele momento de contemplação extática selou o destino de ambos. Beren, um mortal cujos dias eram contados, ousou amar alguém destinada à imortalidade. Lúthien, a mais bela entre os filhos de Ilúvatar, escolheu corresponder ao amor de um homem fadado à morte.

Mas o amor nunca foi conquistado facilmente na Terra-média. E o Rei Thingol, pai orgulhoso e protetor, impôs a Beren uma tarefa impossível: trazer-lhe uma das Silmaril — as joias sagradas forjadas por Fëanor e roubadas por Morgoth — como dote pela mão de sua filha. Era uma sentença de morte disfarçada de desafio, um modo elegante de afastar o mortal atrevido que havia batido na sua porta para pedir sua filha em casamento.

E ainda assim, Beren partiu. E Lúthien, contra todas as expectativas, o seguiu.

O que se desenrolou foi uma das aventuras mais épicas da mitologia tolkieniana: enfrentaram Sauron em sua própria fortaleza, foram aprisionados e libertados, invadiram o próprio trono de Morgoth em Angband, roubaram o Silmaril da coroa do Senhor das Trevas, perderam-no para o lobo Carcharoth e, finalmente, morreram defendendo Doriath.

Mas nem a morte poderia separar tal amor. Lúthien cantou diante de Mandos, o juiz dos mortos, e pela primeira e única vez na história de Arda, Mandos se comoveu. Ofereceu-lhe uma escolha: retornar à vida eterna em Valinor ou renunciar à imortalidade para compartilhar o destino mortal de Beren. Lúthien escolheu a mortalidade. Escolheu algumas décadas de felicidade ao lado de seu amado em vez de eras de saudade imortal.

Juntos, viveram seus dias em paz na ilha de Tol Galen, longe dos palácios élficos, longe da guerra, longe de tudo exceto do amor que os uniu. E quando partiram desta vida, partiram juntos, deixando apenas a lembrança de um amor que desafiou as próprias leis da criação.

O amor de Tolkien e Edith

A história real que inspirou este mito começou em 1908, quando um jovem órfão de 16 anos chamado Ronald Tolkien conheceu Edith Bratt, três anos mais velha, na mesma pensão em Birmingham. A amizade logo floresceu em romance — até ser abruptamente interrompida por ordem do guardião de Tolkien, o padre franciscano Francis Morgan, que o proibiu de ver ou escrever para Edith até completar 21 anos. A razão? Edith era protestante, e Morgan temia que isso prejudicasse a fé católica do jovem Tolkien.

Assim como o Rei Thingol impôs a Beren a tarefa impossível de recuperar um Silmaril, o padre Morgan impôs um desafio de silêncio e espera. E Tolkien, como Beren, obedeceu — mesmo que isso significasse anos de separação dolorosa.

Na noite de seu 21º aniversário, em janeiro de 1912, Tolkien escreveu a Edith pedindo-lhe que se casasse com ele. Entretanto, ela havia ficado noiva de outro homem durante os anos de silêncio — mas aceitou reencontrá-lo. Após uma conversa longa e decisiva na estação de Cheltenham, Edith rompeu o noivado, converteu-se ao catolicismo e reatou o amor com Tolkien. Como Lúthien, ela renunciou aos amigos e ao lar por amor.

Casaram-se em março de 1916, pouco antes de Tolkien ser enviado ao front da Primeira Guerra Mundial. Ele sobreviveu ao inferno da Batalha do Somme, mas voltou devastado, com febre das trincheiras e tendo perdido quase todos os seus amigos próximos. Foi durante sua recuperação, em 1917, que aconteceu o momento que geraria a lenda.

A vida se tornou mito

Em Yorkshire, enquanto convalescía de febre das trincheiras, Tolkien caminhou com Edith por um bosque de cicuta. Foi ali que ela dançou para ele entre as árvores, cantando e sorrindo como se o mundo, por um instante, não estivesse em guerra. Aquela visão ficou eternamente gravada na mente e no coração do escritor.

“Foi naquele momento que nasceu Lúthien Tinúviel”, ele escreveria décadas depois. O momento em que Beren contempla Lúthien em êxtase é uma transfiguração literária do instante em que Tolkien contemplou Edith. Durante essa recuperação nasceu “O Conto de Tinúviel”, a primeira versão do que viria a ser Beren e Lúthien.

A história passou por diversas versões ao longo de décadas: prosa, versos, rascunhos interrompidos e reescritos. Ela foi o fio vermelho que atravessou toda a carreira literária de Tolkien. Em O Silmarillion, é o primeiro grande ato de amor e sacrifício entre um mortal e uma elfa. Em O Senhor dos Anéis, a canção de Aragorn sobre Lúthien no Topo dos Ventos ecoa essa história.

A vida real de Tolkien e Edith seguiu por caminhos surpreendentemente parecidos com os de seus personagens míticos. Edith abandonou a música, a religião protestante, e passou boa parte da vida se sentindo deslocada em meio aos círculos acadêmicos de Oxford. Ela era a Lúthien em um mundo de homens estudiosos e reservas intelectuais. Criou os filhos (John, Michael, Christopher e Priscilla), cuidou do lar, enquanto Tolkien dedicava-se à filologia e à criação de mundos.

Embora o amor nunca cessasse, houve silêncios e distâncias — como nos intervalos entre as versões inacabadas da Balada de Leithian. Só na velhice encontraram, talvez, sua Tol Galen: uma casa em Bournemouth onde, finalmente, desfrutaram de tranquilidade longe das obrigações acadêmicas e sociais.

Quando Edith morreu, em 1971, Tolkien fez inscrever “Lúthien” em sua lápide. Dois anos depois, ao ser sepultado ao seu lado, teve “Beren” inscrito junto de seu nome. A união mítica estava, enfim, selada — para os olhos do mundo.

Conclusão

Beren e Lúthien não é apenas uma fantasia remota da Primeira Era. É o coração pulsante da Terra-média, o conto que Tolkien começou a escrever antes de tudo, ainda em meio à guerra, e que refinou por décadas. Seu filho Christopher reuniu em 2017 as múltiplas versões, publicando o livro que talvez seja o mais íntimo e revelador de todo o legendário tolkieniano.

Essa história atravessa o tempo porque fala de algo eterno: o amor que desafia a morte, que canta mesmo na dor, que dança em meio à sombra. A lenda ressoa através dos séculos na própria Terra-média — no amor entre Arwen e Aragorn, descendentes diretos do casal original, que também enfrentaram a escolha entre imortalidade e amor mortal.

Tolkien e Edith viveram esse amor. E nós o lemos com olhos maravilhados — como Beren, na clareira — contemplando a beleza de uma história que começou com um olhar, passou por uma dança em um bosque de cicuta durante a Grande Guerra, e se tornou um mito eterno. Porque algumas histórias de amor são grandes demais para uma só vida: elas precisam se tornar lendas para que sua verdade seja preservada para sempre.


“Pois ela era (e sabia disso) minha Lúthien.” — J.R.R. Tolkien

Deixe o seu comentário

Rolar para cima