Clive Staples Lewis não era apenas o criador das terras mágicas de Nárnia ou o apologeta cristão de “Cristianismo Puro e Simples“. Em uma era marcada pela corrida espacial e por descobertas científicas que desafiavam visões de mundo tradicionais, Lewis embarcou em uma jornada intelectual ainda mais ambiciosa: explorar como a fé cristã poderia coexistir com a vastidão de um universo potencialmente habitado por outras civilizações.
E se não estivermos sozinhos?
No centro das reflexões de Lewis estava uma pergunta especialmente delicada: “Se Jesus Cristo veio especificamente à Terra para salvar a humanidade, o que aconteceria se descobríssemos outras civilizações inteligentes no cosmos?”
A questão era mais profunda do que parecia. Se Cristo morreu pelos pecados da humanidade, Ele teria “ignorado” outros povos intergalácticos? Como funcionaria a redenção em escala cósmica? A resposta de Lewis era categórica: NÃO, a possível existência de vida extraterrestre não apenas seria compatível com o cristianismo tradicional, mas poderia expandir nossa compreensão da magnificência divina.
As duas abordagens para o tema
Para enfrentar esse território inexplorado, Lewis utilizou tanto de um artigo onde explorava a teologia da questão de forma mais direta, como na ficção científica, onde ele imaginou um universo radicalmente diferente daqueles imaginados por H. G. Wells ou Arthur C. Clark.
1. Religião e Foguetes
Publicado em 1958, e disponível em português como parte do livro “A Última Noite do Mundo“, este ensaio revelava Lewis em sua forma mais analítica e, por vezes, irônica. Ele observava como as pessoas mudavam suas objeções ao cristianismo conforme a ciência evoluía:
“Quando eu era jovem, as pessoas costumavam dizer que o universo não apenas não era amigável à vida, mas certamente hostil a ela… Que isso apenas mostrava o absurdo da ideia cristã… Mas, então, veio o professor F. Hoyle… e todos que conheci pareciam ter decidido que o universo estava provavelmente muito bem provido de globos habitáveis… Que apenas mostrava (igualmente bem) o absurdo do cristianismo.”
Lewis percebia que as pessoas usavam qualquer descoberta científica como munição contra a fé, independentemente de sua natureza. Sua resposta a isso foi desenvolver um método para que pudéssemos entender melhor a questão, pois, para Lewis a descoberta de vida extraterrestre só se tornaria um desafio teológico real se conseguíssemos responder cinco questões fundamentais.
As Cinco Questões Cruciais
- Existem realmente seres vivos em outros planetas? (Ainda não sabemos)
- Algum deles possui “alma racional”? (São seres capazes de abstração moral, não apenas instintos de sobrevivência)
- Se são racionais, alguma dessas espécies “caiu” em pecado como nós? (Este é o ponto central, pois Cristo veio para redimir os caídos, não recompensar os íntegros)
- Se caíram, foram privados da redenção que Cristo trouxe à Terra ou participam dela por meio de nós?
- Se foram privados dessa redenção, é certo que este é o único modo possível de salvação? (Lewis enfatiza a “incomensurável fertilidade do amor divino”, que poderia ter “aplicado diferentes medicamentos para diferentes pacientes”. Ou seja, o mesmo Deus que agiu pela redenção da humanidade pode ter agido de diferentes formas para alcançar outros possíveis seres alienígenas.)
A teoria da “quarentena divina”
Uma das reflexões mais impactantes de Lewis foi sua especulação sobre o isolamento cósmico:
“Eu já me perguntei se as vastas distâncias astronômicas não seriam precauções de quarentena de Deus. Elas impedem que a infecção espiritual de uma espécie caída se espalhe.”
Lewis temia não os desafios teológicos teóricos, mas os problemas práticos do contato. A humanidade, em seu estado caído, tenderia à exploração, à destruição e a um imperialismo teológico perigoso – tentando impor nosso plano de salvação a seres que talvez nem precisassem dele. Sua lealdade, declarava enfaticamente, era “não à nossa espécie, mas a Deus.”
Portanto, para ele, é possível que a humanidade não tenha entrado em contato com outros seres de outros planetas porque foram colocados por Deus em uma espécie de ‘quarentena’, que impede que o ser humano espalhe de forma direta as consequências da Queda para outras raças e planetas.
2. A Trilogia Cósmica
Se “Religião e Foguetes” fornecia o esqueleto lógico, a Trilogia Cósmica veste essa estrutura com narrativa vibrante e teologia imaginativa. Composta por três romances revolucionários, a trilogia pintava um universo que era o oposto do vácuo frio e morto pintado pelo materialismo científico como uma tese de que ‘estamos sozinhos num espaço gigante e frio’. Ele surgiu como resultado de um desafio entre ele e Tolkien, cuja parte tolkieniana nunca chegou a ser publicada.
“Além do Planeta Silencioso” (1938)
Introduz a Terra como Thulcandra – “o planeta silencioso” – um mundo em quarentena espiritual devido à rebelião de seu anjo guardião.
“Perelandra” (1943)
Explora Vênus como um mundo que se encontra como que em um Jardim do Éden sem efeitos do pecado, mas que enfrentando sua própria tentação. Essencialmente, neste livro Lewis faz uma reimaginação do Gênesis em escala cósmica. O que aconteceria se o mal que está na Terra chegasse a um planeta que não sofreu a Queda?
“Aquela Fortaleza Medonha” (1945)
Traz a batalha cósmica de volta à Terra, onde forças divinas e demoníacas se enfrentam em um cenário contemporâneo onde o cientificismo, uma visão deturpada da ciência, deseja se utilizar de todo e qualquer meio para submeter à natureza aos seus desejos. Uma crítica à noção moderna de progresso que ele compartilha com Tolkien.
Uma cosmologia angelical sofisticada
Na Trilogia Cósmica, Lewis não se contentou em criar apenas alienígenas interessantes. Ele desenvolveu uma angelologia cósmica complexa que resgatava a visão medieval de um universo permeado por inteligências espirituais:
Maleldil
O Deus Criador, análogo ao Deus trino do cristianismo – a fonte de toda autoridade e amor no cosmos.
Oyeresu (singular: Oyarsa)
Grandes inteligências angélicas que governam cada planeta do “Campo de Arbol” (nosso sistema solar). Lewis se inspirou em fontes como Pseudo-Dionísio Areopagita e sua hierarquia angelical, além de autores medievais como Bernardus Silvestris.
Eldila (singular: Eldil)
Inúmeros seres angélicos menores – “espíritos ministradores” que habitam o “Céu Profundo”. Descritos como seres de luz e movimento puro, sua percepção da realidade transcende drasticamente a nossa.
Hnau
O termo universal para criaturas racionais e sencientes, incluindo humanos, as diversas espécies marcianas (hrossa, séroni e pfifltriggi de Malacandra) e os habitantes de Perelandra.
A terra é uma exceção trágica na dança cósmica
Na cosmologia de Lewis, a Terra ocupava uma posição única e melancólica. Enquanto outros mundos mantinham sua harmonia com o divino, Thulcandra era a exceção trágica – seu Oyarsa havia se rebelado (o conhecido na obra como “O Torto”), mergulhando o planeta em escuridão espiritual e isolando-o do restante do cosmos.
Mundos como Malacandra (Marte) e Perelandra (Vênus) eram apresentados como não caídos ou passando por suas próprias provações divinamente orquestradas, sempre sob a proteção de seus Oyeresu leais a Maleldil.
O clímax teológico da trilogia ocorre em “Perelandra”, quando os Oyeresu de Marte e Vênus, junto com o protagonista humano Ransom, celebram a “Grande Dança” – a harmonia ordenada e jubilosa de toda a criação em louvor a Maleldil.
Neste momento transcendente, a Encarnação de Cristo na Terra assume um significado cósmico central:
“Tudo o que não é em si a Grande Dança foi feito para Ele poder descer e entrar. No Mundo Caído, Ele preparou para Si Mesmo um corpo e se uniu ao Pó, conferindo-lhe glória para sempre. Esse é o objetivo e causa final de tudo ser criado; e o pecado pelo qual ele ocorreu é chamado de Afortunado, e o mundo onde isso se deu é o centro dos mundos. Louvado seja Ele!”
Aqui, Lewis abraça o conceito da “Queda Afortunada” (Felix Culpa) desenvolvida por Agostinho de Hipona – a ideia de que a queda da humanidade, embora trágica, possibilitou um ato ainda maior de amor divino através da Encarnação. A Terra não é diminuída por sua condição caída; ao contrário, torna-se o palco de um ato divino de condescendência sem precedentes, cujos ecos ressoam por todo o universo.
Um legado de fé
A incursão de C.S. Lewis na questão da vida extraterrestre representa muito mais que especulação teológica – é um testemunho de uma fé robusta combinada com imaginação prodigiosa. Lewis não fugiu dos dilemas de sua época; ao contrário, os abraçou como oportunidades para construir uma visão de universo onde a soberania e o amor de Deus se estendem infinitamente além dos confins terrestres.
Suas especulações, como ele próprio reconhecia, não eram dogmas inflexíveis, mas ferramentas para nos ajudar a “contemplar a majestade do nosso Deus” em uma escala verdadeiramente cósmica.
Lewis nos lembra que a fé cristã, longe de ser provinciana ou limitada, possui implicações que ressoam através de todas as galáxias, a fé possui consequências cósmicas. Em uma era em que a ciência continua expandindo nossos horizontes sobre a possibilidade de vida no universo, a visão teológica cósmica de Lewis permanece surpreendentemente relevante e inspiradora.
A mensagem final é clara: um Deus capaz de criar um universo de bilhões de galáxias certamente possui amor e sabedoria suficientes para cuidar de toda vida inteligente que possa existir nele. A descoberta de vida extraterrestre não diminuiria nossa fé – poderia apenas revelar quão magnificamente grande é o projeto de Deus para o universo e para cada uma de suas criaturas.