C.S. Lewis, um dos mais influentes escritores do século XX, é mundialmente reconhecido por As Crônicas de Nárnia, mas sua Trilogia Cósmica representa um marco literário igualmente significativo, e certamente mais denso e mais ousado, ainda que menos celebrado. Esta obra-prima da ficção científica filosófica-teológica nasceu de uma conversa informal e desafiadora com seu amigo próximo e também escritor lendário, J. R. R. Tolkien.
O desafio
Durante um encontro que se tornaria histórico, Lewis e Tolkien estabeleceram um acordo criativo. Ambos estavam insatisfeitos com a abordagem superficial que o gênero de ficção científica normalmente apresentava – narrativas centradas em tecnologia e aventuras espaciais sem muita profundidade reflexiva sobre os temas que perpassavam a história da literatura ocidental. Tolkien propôs que cada um escrevesse uma história que mergulhasse além do entretenimento superficial, explorando dimensões filosóficas e existenciais mais profundas.
Tolkien comprometeu-se a escrever sobre viagens no tempo, um projeto que ele iniciou, mas que nunca seria concluído (como era costume de Tolkien). Lewis, por outro lado, abraçou o desafio completamente, criando a Trilogia Cósmica – composta pelos romances “Além do Planeta Silencioso”, “Perelandra” e “Aquela Força Medonha” – que se tornaria uma obra única no universo de ficção científica.
Um protagonista inspirado em Tolkien
No coração da trilogia está o Dr. Elwin Ransom, um personagem profundamente inspirado no próprio Tolkien. Professor de linguística (mais especificamente, de filologia, assim como Tolkien), Ransom não é um herói tradicional de ficção científica. Ele representa um intelectual comum que é transportado de maneira que foge do seu controle para experiências extraordinárias.
Em “Além do Planeta Silencioso”, Ransom é sequestrado e levado a um planeta chamado por seus habitantes locais de Malacandra, mas que nós conhecemos como Marte. Lá ele descobre civilizações alienígenas profundamente organizadas e espiritualmente evoluídas. É aqui que vemos a diferença de Lewis para muitas das obras do seu tempo. Além das questões existenciais sobre a natureza da humanidade diante da vida fora da Terra, Lewis adiciona elementos únicos para as espécies extraterrestres que fazem questionar se aquilo que entendemos como ‘raça evoluída’ é realmente o que encontramos como estereótipos em outras obras.
Questionamentos filosóficos e teológicos
A Trilogia Cósmica se destaca por sua abordagem única. Cada romance é simultaneamente uma narrativa de ficção científica, uma reflexão filosófica e possui elementos de alegoria teológica, como é costume de outras obras ficcionais de Lewis. Ele utiliza a exploração espacial não como um fim em si mesma, mas como um veículo para discussões profundas sobre a natureza do bem e do mal, livre arbítrio, redenção e o papel do divino no universo.
Em “Perelandra”, por exemplo, Ransom é enviado a um planeta que representa um novo Éden, onde deve impedir a Queda de seus habitantes para a tentação – uma clara referência alegórica à história bíblica de Adão e Eva. O planeta é descrito como um paraíso flutuante, com ilhas verdes ondulantes sobre um vasto oceano. A Dama Verde, a Eva deste novo mundo, vive em perfeita inocência e harmonia com a criação. Esta configuração permite que Lewis explore temas fundamentais da teologia cristã, como a natureza da tentação, o livre-arbítrio e as consequências da Queda. Lewis descreve Perelandra com uma prosa vívida e poética:
“Era um mundo jovem e não era habitado por nenhuma raça de débeis, mas por uma que se erguia ainda úmida da argila criadora de Deus, radiante na manhã de sua criação.”
Este cenário serve como pano de fundo para um drama cósmico que ecoa a narrativa bíblica da Gênesis, mas com uma reviravolta crucial.
O clímax de “Perelandra” gira em torno da batalha entre Ransom e o Homem-Sem-Alma, uma entidade demoníaca que possui o corpo do cientista Weston. Esta figura não é meramente um antagonista, mas uma personificação metafísica do mal absoluto – um ser que transcende a individualidade humana e representa uma força cósmica de corrupção e destruição.
O Homem-Sem-Alma é uma evolução terrível do personagem Weston, que aparece no primeiro livro da trilogia. Enquanto Weston era originalmente um cientista racionalista e materialista, no segundo volume ele se transforma completamente. Lewis o apresenta como um recipiente para uma entidade demoníaca, esvaziando completamente sua humanidade original. Esta transformação simboliza o processo último de desumanização – um ser que perdeu não apenas sua alma, mas sua essência moral e racional.
Já “Essa Força Medonha” apresenta uma crítica contundente ao cientificismo e ao materialismo, mostrando uma Terra ameaçada por forças que buscam dominar e destruir a essência da humanidade através da tecnologia e da racionalidade desconectada de valores espirituais.
Uma conspiração para ‘melhorar’ a raça humana começa a tomar conta do governo, de ONGs e de veículos de imprensa. Mas nem tudo é o que parece.
Simbolismos
Lewis desenvolve um simbolismo extremamente rico, utilizando seres angelicais para representar forças cósmicas e espirituais. Cada planeta, neste universo criado por Lewis, possui um Oyarsa, uma espécie de anjo guardião, semelhante em alguns sentidos aos Valar do universo de Tolkien. O Oyarsa de Terra, conhecido como O Curvado, é uma alegoria direta à queda de Lúcifer, simbolizando a corrupção e o afastamento do propósito divino original. Através desse elemento, Lewis traz o debate da moralidade em seres que não enfrentaram os mesmos problemas que os seres humanos.
Assim, a importância da Trilogia Cósmica transcende seu tempo. Lewis antecipa discussões contemporâneas sobre os limites do conhecimento humano, os perigos do progresso tecnológico desconectado de considerações éticas e a necessidade de reconhecer nossa posição no vasto universo.
A continuação inacabada e o legado
Após concluir a trilogia, Lewis começou a trabalhar em uma continuação intitulada “A Torre Sombria“. Este manuscrito inacabado, publicado postumamente, oferece um vislumbre fascinante das explorações adicionais que Lewis pretendia realizar em seu universo ficcional. Nela ele consegue até mesmo se inserir dentro da história, que se encontra disponível também em português.
Ao transformar uma simples aposta literária em uma obra-prima que mistura ficção científica, filosofia e teologia, C.S. Lewis criou algo verdadeiramente único – uma narrativa que continua a provocar, inspirar e desafiar leitores décadas após sua criação.