Jane Austen, embora raramente discutisse religião explicitamente em seus romances, era uma mulher de fé profunda. Filha de um clérigo anglicano, Austen cresceu em um ambiente onde a fé cristã era central. Esta influência pode ser observada sutilmente em suas obras, particularmente em seu tratamento de temas morais e éticos.
Em suas cartas à irmã Cassandra, Austen frequentemente fazia referências a sua fé. Em uma carta datada de 1813, ela escreveu: “Eu sou muito grata a Deus por minha feliz disposição e por meus sentimentos religiosos, os quais, espero, nunca me abandonem.” Esta declaração revela não apenas a importância da fé na vida de Austen, mas também como ela via essa fé como fonte de força e consolo.
É através desta lente de fé que podemos começar a entender as semelhanças surpreendentes entre “Orgulho e Preconceito” e a história bíblica de Rute. Embora Austen não tenha deliberadamente criado uma alegoria bíblica, os temas de virtude, providência e transformação moral que permeiam sua obra encontram ecos notáveis na narrativa de Rute.
Diferença social
Tanto em “Orgulho e Preconceito” quanto na história de Rute, as diferenças sociais desempenham um papel crucial na narrativa. Em “Orgulho e Preconceito”, Elizabeth Bennet, filha de um cavalheiro de posses modestas, enfrenta um abismo social em relação ao rico e aristocrático Mr. Darcy. Este contraste é evidenciado na famosa cena do baile em Netherfield, onde Darcy inicialmente rejeita a ideia de dançar com Elizabeth, declarando a seu amigo Mr. Bingley:
“Ela é tolerável, suponho, mas não bonita o suficiente para me tentar; não estou com humor para dar atenção a moças que são desdenhadas por outros homens.”
Esta declaração arrogante não apenas ilustra o orgulho inicial de Darcy, mas também sublinha a disparidade social que ele percebe entre si mesmo e Elizabeth.
De maneira semelhante, na história de Rute, encontramos uma disparidade social igualmente marcante. Rute, uma viúva moabita empobrecida, encontra-se em uma posição social precária em relação ao rico proprietário de terras israelita, Boaz. Esta diferença é evidenciada quando Rute, surpresa pela bondade de Boaz, questiona:
“Por que achei favor aos teus olhos, para que faças caso de mim, sendo eu estrangeira?” (Rute 2:10)
Esta pergunta ressalta não apenas a diferença de status social, mas também a barreira cultural entre uma moabita e um israelita.
Preconceitos superados
A jornada de superação de preconceitos é central em ambas as narrativas. Em “Orgulho e Preconceito”, Elizabeth deve superar seu preconceito inicial contra Darcy, formado após ouvir as falsas acusações de Wickham e testemunhar o comportamento aparentemente arrogante de Darcy. Por sua vez, Darcy precisa superar seu orgulho e seus preconceitos de classe para reconhecer o verdadeiro valor de Elizabeth.
Esta transformação é belamente capturada na declaração de Darcy a Elizabeth, após sua segunda proposta de casamento:
“Fui egoísta toda a minha vida, na prática, embora não em princípio. Quando criança, ensinaram-me o que era certo, mas não me ensinaram a corrigir meu temperamento. Deram-me bons princípios, mas deixaram que os seguisse com orgulho e presunção.”
Esta admissão honesta revela o crescimento pessoal de Darcy e sua disposição de reconhecer e corrigir seus próprios defeitos.
Na história de Rute, vemos uma superação semelhante de preconceitos. Boaz, um homem respeitado em Israel, deve superar os preconceitos culturais contra os moabitas para reconhecer a virtude e o valor de Rute. Sua declaração a Rute ilustra esta superação:
“Seja-te dito tudo quanto fizeste à tua sogra, depois da morte de teu marido, e como deixaste a teu pai e a tua mãe, e a terra onde nasceste, e vieste para um povo que antes não conhecias.” (Rute 2:11)
Aqui, Boaz não apenas reconhece as qualidades de Rute, mas também sua coragem em deixar sua terra natal para seguir o Deus de Israel.
A surpreendente virtude
Tanto Austen quanto o autor do livro de Rute enfatizam a importância da virtude e da bondade como as verdadeiras medidas do valor de uma pessoa. Em “Orgulho e Preconceito”, Elizabeth é admirada não por sua beleza ou riqueza, mas por sua inteligência, vivacidade e integridade moral. Darcy, apesar de sua riqueza e status social, só se torna verdadeiramente admirável aos olhos de Elizabeth quando ela reconhece sua bondade e generosidade, especialmente em suas ações para ajudar Lydia.
De modo similar, Rute é elogiada não por sua beleza ou posição social, mas por sua lealdade, diligência e fé. Boaz reconhece estas qualidades quando diz:
“O Senhor retribua o teu feito; e te seja concedido pleno galardão da parte do Senhor Deus de Israel, sob cujas asas te vieste abrigar.” (Rute 2:12)
Esta ênfase na virtude sobre a posição social ou a aparência física reflete uma visão profundamente bíblica do valor humano, que Austen, com sua fé cristã, claramente compartilhava.
O papel da providência
Um tema subjacente tanto em “Orgulho e Preconceito” quanto na história de Rute é o papel da providência na união dos casais. Em “Orgulho e Preconceito”, uma série de eventos aparentemente fortuitos – como a doença de Jane que a leva a ficar em Netherfield, ou o encontro inesperado de Elizabeth e Darcy em Pemberley – contribuem para a eventual união do casal.
De maneira similar, na história de Rute, uma série de “coincidências” leva Rute ao campo de Boaz. Como o texto bíblico habilmente observa:
“E foi por acaso que ela chegou à parte do campo que pertencia a Boaz, que era da família de Elimeleque.” (Rute 2:3)
Esta afirmação quase irônica (mas altamente esclarecedora) sugere que, longe de ser mero acaso, estes eventos são guiados por uma mão divina.
As bodas celestiais
A ideia de que o casamento não é principalmente sobre romance, mas sobre proteção, provisão e cumprimento do dever, é evidente em ambas as narrativas.
Em “Orgulho e Preconceito”, vemos Darcy assumindo o papel de protetor e provedor não apenas para Elizabeth, mas para toda a família Bennet quando ele intervém para salvar a reputação de Lydia. Este ato de bondade e responsabilidade, mais do que qualquer declaração romântica, é o que finalmente conquista o coração de Elizabeth.
Na história de Rute, o papel de Boaz como “redentor” (go’el em hebraico) é central. Ele não apenas provê para Rute durante a colheita, mas também assume a responsabilidade legal de cuidar dela através do casamento. Como o texto bíblico afirma:
“Boaz disse: No dia em que tomares a terra da mão de Noemi, também a tomarás da mão de Rute, a moabita, mulher do falecido, para suscitar o nome do falecido sobre a sua herança.” (Rute 4:5)
Este conceito de casamento como um ato de redenção e proteção reflete profundamente a teologia cristã do casamento como um reflexo do amor de Cristo pela Igreja.
Ao examinar os paralelos entre “Orgulho e Preconceito” e a história de Rute, vemos como temas universais de amor, virtude e providência divina transcendem tempo e cultura. Embora Jane Austen não tenha intencionalmente criado uma alegoria bíblica, sua fé cristã claramente influenciou sua compreensão destes temas fundamentais.
Tanto Elizabeth e Darcy quanto Rute e Boaz nos oferecem modelos de como o amor verdadeiro pode superar barreiras sociais e preconceitos pessoais. Suas histórias nos lembram que o verdadeiro valor de uma pessoa reside em seu caráter e virtude, não em sua posição social ou riqueza.
Além disso, ambas as narrativas nos convidam a considerar o papel da providência divina em nossas vidas. Elas sugerem que, mesmo quando os eventos parecem ser meras coincidências, pode haver um propósito maior em ação.
Por fim, estas histórias nos oferecem uma visão do casamento que vai além do romance, enfatizando os temas de proteção, provisão e cumprimento do dever. Esta perspectiva, profundamente enraizada na teologia cristã, nos convida a ver o casamento não apenas como uma união pessoal, mas como um reflexo do amor divino e um meio de cumprir um propósito maior.
Assim, ao lermos “Orgulho e Preconceito” à luz da história de Rute, somos convidados a uma compreensão mais profunda do amor, da virtude e do propósito divino em nossas próprias vidas e relacionamentos.