Jane Austen e a fé cristã: entre a virtude e a sensibilidade

Apesar de muitos estudiosos debaterem o real tamanho da influência da fé cristã na obra de Jane Austen, a sua presença é inegável. É assim que muitos biógrafos enxergam sua vida pessoal, e é assim que enxergavam também o crítico literário C. S. Lewis e o filósofo moral Alasdair MacIntyre. 

Austen cresceu em uma família religiosa e recebeu educação anglicana. Seu pai era um pastor da Igreja da Inglaterra, o que a expôs aos ensinamentos e práticas cristãs desde a infância. Ela também frequentava a igreja regularmente e participou de atividades religiosas da comunidade durante toda a sua vida.

Os valores cristãos, como honestidade, compaixão, responsabilidade e autocontrole, são frequentemente destacados em seus romances e as narrativas de Austen frequentemente exploram temas de justiça, perdão e redenção, conceitos profundamente enraizados na fé cristã. E vemos a influência do cristianismo não apenas nos temas que a autora inglesa tratava nos seus livros, e na forma como ela escrevia as suas histórias.

Como explica C. S. Lewis, as heroínas dos principais romances de Austen passam por um processo que ele chama de ‘desilusão’, levando-as a “descobrir que estavam cometendo erros tanto sobre si mesmas quanto sobre o mundo em que vivem”. Esse processo é aquilo que Lewis entende como um auto exame de consciência tipicamente cristão, que leva às personagens a desenvolverem durante as histórias a um crescimento moral e a uma compreensão melhor de si mesmas.

Lewis era um ávido leitor da escritora, chegando a expressar que “tenho lido ‘Orgulho e preconceito’ durante toda a minha vida, porém não me enjoo do livro nem um pouco.” Como está registrado em uma carta publicada em português no livro ‘Como cultivar uma vida de leitura’.

Já Alasdair MacIntyre, filósofo da ética, entende a obra de Austen com outro prisma em seu livro “Depois da virtude”. Ele enxerga a autora profundamente enraizada na tradição aristotélico-cristã de descrever a ética como um processo de educação moral, que não se trata apenas de fazer o que é certo, mas de cultivar o caráter e as disposições para querer fazer o certo através da busca ativa das virtudes. Para o autor, “as virtudes são disposições não apenas para agir de maneiras particulares, mas também para sentir de maneiras particulares”, e os personagens encontrados nos livros da autora estão repletos de momentos em que seus sentimentos morais são a força-motriz da narrativa.

Pelo que vemos nas cartas de Austen, que registram algumas orações, isso não seria apenas a expressão externa de alguma doutrina que a inglesa acreditava, mas era aquilo que ela realmente praticava ativamente na sua vida devocional. Esse auto exame mencionado por Lewis e o cultivo de hábitos mencionados por MacIntyre são atividades explícitas nas orações escritas por Jane. Como no seguinte trecho: “Ensina-nos a compreender a pecaminosidade de nossos próprios Corações, e traga ao nosso conhecimento cada falha de Temperamento e cada Hábito maligno em que nos entregamos ao desconforto de nossos semelhantes e ao perigo de nossas próprias Almas.” E também em: “Inclina-nos, oh Deus, a pensar humildemente de nós mesmos, a ser severos apenas no exame de nossa própria conduta, a considerar nossos semelhantes com bondade e a julgar tudo o que dizem e fazem com a caridade que desejaríamos deles mesmos.”

É por ter um senso moral altamente desenvolvido, que isso transpira em suas obras, nas quais ela valoriza a honestidade e a integridade como pilares do caráter moral. Isso é visível em personagens como Elizabeth Bennet em “Orgulho e Preconceito” e Fanny Price em “Mansfield Park” demonstram uma forte bússola moral e se recusam a comprometer seus princípios, mesmo sob pressão social.

A compaixão pelos menos afortunados e a disposição para ajudar os outros também são valores frequentemente demonstrados pelos personagens dela. Em “Emma“, por exemplo, a protagonista aprende a superar seu egoísmo e a desenvolver compaixão pelos outros.

Personagens falhos e imperfeitos cometem erros e enfrentam as consequências de suas ações, buscando redenção e aprendizado através da fé e do arrependimento. O perdão e a reconciliação entre personagens são temas recorrentes, demonstrando a capacidade de superação de conflitos e a importância do amor cristão. Personagens como Mr. Darcy em “Orgulho e Preconceito” aprendem com seus erros e buscam o perdão, demonstrando a capacidade humana de crescimento e transformação.

Entretanto, isso não quer dizer que Austen possuía uma visão idealizada da igreja do seu tempo. E ela não hesita em criticar a hipocrisia religiosa por meio de personagens como Mr. Collins, um clérigo pomposo e cheio de si. Demonstrando uma visão crítica daqueles que usam a religião para ganho pessoal ou para exercer poder sobre os outros.

Isso não é uma crítica à religião em si, como muitos críticos entendem, mas é a demonstração da firme convicção que a autora tinha em relação à sua própria fé. E dessa forma, ela mostra um profundo entendimento da condição humana e de como o coração humano é inclinado à virtude e ao vício ao focar nas ações e consequências das escolhas morais dos personagens. E ao mesmo tempo incentiva o discernimento individual, alertando para os perigos de seguir cegamente dogmas ou se deixar levar pelas aparências sociais. 

Paralelos entre Orgulho e Preconceito e Rute e Boaz

Além disso, apesar de não ser explícita, alguns autores também apontam para a semelhança entre a história de Elizabeth e Mr. Darcy, em “Orgulho e Preconceito” e a história bíblica de Rute e Boaz. A possibilidade disso ser verdadeiro não quer dizer necessariamente que a escritora criou uma ficção que deveria servir como alegoria ou atualização da história bíblica para os seus tempos, mas é ao menos um sinal de que ela estava tão mergulhada no mundo bíblico que suas histórias refletiam claramente temas e motivos que exalavam fortemente as Escrituras. Vejamos algumas semelhanças:

  • O abismo da diferença social: Tanto em “Orgulho e Preconceito” como na história de Rute e Boaz, existe uma diferença de status social entre os protagonistas. Elizabeth Bennet pertence à classe média baixa, enquanto Mr. Darcy é um rico proprietário de terras. Da mesma forma, Rute é uma moabita pobre, enquanto Boaz é um rico israelita.
  • A superação de preconceitos: Em ambas as histórias, os protagonistas precisam superar preconceitos para ficarem juntos. Darcy precisa superar seu orgulho e preconceito de classe em relação a Elizabeth, enquanto Boaz também é desafiado pelas normas sociais ao propor um casamento com Rute, uma estrangeira moabita, um povo descendente de Ló que já havia se levantado contra Israel em inúmeras ocasiões. Mas nas duas histórias, o amor é apresentado como força transformadora, capaz de quebrar orgulho e preconceitos e levar os personagens ao crescimento moral.
  • A bondade e a virtude como qualidades que geram admiração no casal: Tanto Elizabeth como Rute são retratadas como mulheres de bom caráter, virtuosas e trabalhadoras. Da mesma forma, Darcy e Boaz são homens honrados e generosos, mas ao mesmo tempo prudentes. Boaz é alguém que admira a moabita de longe, e só age em relação a ela depois de falar com o conselho da cidade. Enquanto Darcy é alguém reservado e que se mostra como racional na análise de outras pessoas, mas que não teme em agir quando a situação pede, como quando ele vê que a honra da família de Elizabeth está ameaçada. Ambos agem para trazer bom nome às famílias das duas.
  • O casamento como resultado da Providência: Ambas as histórias culminam em um casamento que transcende as barreiras sociais e une os protagonistas. Mas estes matrimônios só ocorrem após eventos aparentemente aleatórios levarem os protagonistas a se encontrarem e superar as dificuldades. No livro bíblico, essa sequência de ‘acasos’ é produto da mão divina que está guiando a história de Rute e Boaz para um propósito maior: o estabelecimento da linhagem de Davi, e por consequência, de Jesus Cristo. Enquanto em “Orgulho e preconceito”, os acasos servem para que Lizzy e Mr. Darcy superem os preconceitos entre si e finalmente reconheçam as qualidades um do outro.

Dessa forma, vemos que os romances de Jane Austen refletem os valores cristãos que ela vivia em sua vida pessoal e social, e exploram temas religiosos de forma sutil e complexa, contribuindo para a profundidade e riqueza de sua narrativa. Esses valores não são apenas temas abstratos ou paralelos bíblicos, mas também são encontrados na própria forma pela qual a autora cria e desenvolve os seus personagens em torno da importância da formação do caráter, da educação sentimental e da prática habitual para o desenvolvimento de disposições virtuosas. Que possamos aprender também desses personagens em suas virtudes e que eles possam nos estimular a fortalecer o nosso próprio caráter como cristãos. 

Com informações de Seen and Unseen e The Gospel Coalition.

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